Por Sulamita Esteliam

“A cidade é uma bela senhora/que hoje sorri e amanhã te devora.” Os versos, que transcrevo de memória – com o risco de errar -, são do personagem Jumento, de Saltimbancos – ópera, infantil?, composta por Chico Buarque, na década de 70. É inspirada na Revolução dos Bichos, do norteamericano, George Orwell.
Ainda que as palavras, todas, não sejam exatamente as originais do nosso compositor-modelo, o sentido é perfeito como ponto de partida destas linhas. Que pretendem pregar a GENTILEZA URBANA, mais do que apontar o dedo para os problemas.
Não sei quanto a vocês, mas, para mim, trata-se de expressão mais ou menos recente, pós-moderna, eu diria. Ouvi, de fato li, pela primeira vez num artigo de uma urbanista mineira, cujo nome não me lembro mais, para o pasquim também mineiro, O Cometa Itabirano.
Já era o início deste século XXI, coisa de 2001/2002, quiçá 2003. Achei fenomenal, e se sempre fui observadora-crítica, digamos, passei a anotar, mentalmente, cada gesto de gentileza, e de grosseria, urbana. Isso quando, humor instável, não verbalizo imprecações verbais ou gestuais contra trangressores – o que é nem um pouco gentil, afora o risco de levar um chega-pra-lá…
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Na verdade, gentileza traduz o que nossa avós e mães chamariam de boa educação ou bons modos ou boas maneiras. Só que amplificadas e aplicadas na convivência coletiva. É, de fato, a capacidade que desenvolvemos – ou deveríamos – de viver em comunidade. É mais do que bom-dia, boa-tarde (tem e continua tendo hífem, viu minha gente!), por favor, com licença, muito obrigado.
Implica respeitar os limites do outro, ainda que o outro não seja exatamente o mais próximo. Enfim, gentileza urbana, no frigir dos ovos, é troca, no melhor dos significados. Portanto, nada mais é que exercício de cidadania, de respeito aos direitos humanos.
Partimos, sim, do umbigo, que é nossa casa conhecida: os direitos e desejos de cada um merecem respeito. Mas, vamos para o mundo. Afinal, somos indivíduos, mas não somos uma ilha: precisamos um do outro, e esse outro também tem direitos e desejos que devem ser respeitados.
Cada um e todos temos direitos, desejos e deveres, obrigações – com a gente mesmo, com o outro; com nossa rua, nossa comunidade, com nosso bairro. Nossa cidade é nossa casa coletiva, comunitária.
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Quem anda por aí, sabe que, no geral, nem de longe é o que se vê. E não precisa ser alguém com necessidades especiais – físicas ou de qualquer natureza. Por mais que tenhamos evoluído – e há sinais de civilidade no ar e em terra.
Na maioria das vezes, porém, a gente é levado a acreditar que o ser humano não está preparado para a vida coletiva. E aí, sobra espaço para o caos, e para a violência, filha dileta da Babel. Apesar de cobrarmos do Estado – e é nosso direito e dever cobrar -, nem sempre fazemos a nossa parte.
Jogar lixo nas ruas, na praia, nas paradas de coletivos, pelas janelas dos ônibus, dos carros, dos prédios, é “normal” e corriqueiro. Calçada não é mais lugar de pedestre, mas estacionamento. Sinal amarelo é ordem para acelerar. Cruzamentos são fechados, sem importar o tamanho do engarrafamento, do buzinaço, do transtorno que vai provocar.
Nas paradas de ônibus, vale o empurra-empura, a lei do mais forte, do mais rápido, do mais esperto. A porta de acesso só cabe uma pessoa de cada vez, mas isso é detalhe. Também é detalhe a sinalização de assentos reservados a idosos, grávidas, obesos e portadores de deficiência. O mesmo se verifica em relação às vagas especiais em estacionamentos de supermercados e shoppings.
Os monumentos públicos são pichados, as praças, parques e seus equipamentos são depredados. Mesmo havendo banheiros disponíveis, a calçada, a areia, a árvore, a rua é a privada coletiva.
Público, no mais das vezes, é entendido como sendo “de ninguém”, quando na verdade é de todos.
Público é fruto do trabalho, do suor de cada um de nós, traduzidos em impostos aplicados pelas autoridades que nós colocamos no poder. Então, se destruímos o que é público, estamos quebrando nossa própria casa, estamos nos autoagredindo.
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“Gentileza gera gentileza”, repetia, incansável, o profeta popular, Gentileza, que vivia no Rio, cruzou o país e já virou estrela. Mas sua profissão de fé deve continuar nos inspirando.
É nos pequenos gestos que a humanidade que existe em cada um de nós se revela. E são esses pequenos detalhes que nos fazem diferentes dos animais ditos irracionais. Ou não. Na maioria das vezes, é questão de escolha.