Lembranças de Maria, de Fátima e da vida

por Sulamita Esteliam

Dia desses, voltava do dentista, nas Graças, e resolvi descer a pé para pegar o ônibus na Agamenon Magalhães, no centro expandido. Mas, chegando lá, decidi esticar até Santo Amaro. Sou dessas, que apreciam andar a pé, feito cachorro caído da mudança.

Queria mesmo era conferir, na livraria da Editora Vozes, se ainda existiria um exemplar perdido do meu livro Estação Ferrugem, um quarto de século depois do lançamento. Claro que não havia.

Não obstante, faz bem ao ego ver o espanto em forma de sorriso no rosto de atendentes, quando você se apresenta como autora do título que procura.  Embora o Recife seja um lugar onde se tropeça em autores.

Há tempos venho ensaiando reeditar o livro,  que só é encontrado em sebos virtuais, e os 25 anos do lançamento seria um bom mote. Os direitos são meus há 17 anos, a revisão ortográfica está pronta faz tempo. No entanto, o problema central persiste: encontrar a editora. Estou com livro novo pronto, e é a prioridade na saga por edição.

Foi mais fácil na estreia: sob as bençãos do ti Célio (de Castro), então prefeito de Belo Horizonte pelo PSB, depois PT, e de seu secretário de Cultura, ninguém menos que Luiz Dulci – ele mesmo, que veio a ser chefe da Casa Civil dos dois primeiros governos Lula.

O Universo conspirou para o resgate da história romanceada da região operária da cidade, onde cresci: a Prefeitura bancou metade dos recursos da edição, que cabia nas celebrações do centenário de Belo Horizonte, e a editora não teve argumentos para retroagir, embora tentasse.

Dia desses, passei alguns minutos lutando na internet para atender ao chamado para originais de uma grande editora. Tentei enviar meu terceiro romance: o sistema girou, girou, girou e quando completou a volta, a cota de 250 exemplares do dia já havia sido completada, em 13 minutos; dois dias seguidos. O limite eram 500 originais no total.

Entende-se que a modernidade tem dessas coisas: ou funciona, ou buga, o que é previsível numa chamada pública de uma grande editora no deserto de editoras. E quem chegar primeiro bebe água limpa.

Mas dá uma agonia de uma enormidade, que chega a oprimir o peito e nublar os olhos, não devo mentir.

Fiz reclamação direta do que, no fundo da alma, considerei desrespeito: recebi uma resposta educada de pesar pela minha frustração. Espernear é da lei, mas as editoras ditam as regras. São profissionais, e a gente que purgue.

De volta a Santo Amarro, já que estava por ali, segui para a Boa Vista a fim de pegar o ônibus de volta para meu território, Boa Viagem. Foi então que me deparei com algo que não havia observado nesses 26 anos de Recife: há um santuário de Nossa Senhora de Fátima no lado oposto ao da Unicap, na Rua do Príncipe.

Fica no estacionamento da Escola de Enfermagem, desagregada do todo principal. A entrada é pelo estacionamento. Creio que do outro lado, na Soledade, é terreno do Colégio Nóbrega, fundado por jesuítas em 1917.

A pequena capela, pouco mais do que uma ermida, é em formato circular, mas de linha futurísticas, em estilo semigótico, sustentada por arcos de concreto armado. A pesquisa posterior me ensina, e mais: o projeto é do arquiteto francês Georges Mounier, com inauguração em 1935.

Recife é assim, história e arte por toda parte. É o primeiro santuário dedicado à Virgem de Fátima pelos jesuítas, antes mesmo da construção do monumento em Portugal.

É lá que a história católica registra o aparecimento da santa para as três crianças pastorinhas, com apelo para “rezarem o terço para alcançar a paz, acabar com a guerra.” Continua valendo, para quem tem fé, sabe orar e acredita no valor da prece.

A capela daqui estava fechada no dia do descobrimento. Só pude ver a imagem solenemente guardada em moldura de vidro, num cercadinho à esquerda da orada.

Pensei logo em minha mãe e em minha tia Maria, a caçula. Ambas estiveram no Recife mais de uma vez e Euzinha, em minha ignorância sobre a terra onde escolhi viver,  não as levei a conhecer algo de tamanha devoção delas.

Esta manhã, quando folheava meu livro Estação Ferrugem, em busca de um trecho sobre episódio da história do lugar,  caíram algumas fotos da minha tia, que separei para entregar às primas Andreia e Angélica. Imagens lindas, de tempos felizes.

Euzinha cliquei, em 2002, numa daquelas farras que reúne a família inteira, na chácara da família do marido da Andréia; nessa até meu irmão estava, ele que raramente se dá ao trabalho de botar o pé fora de casa, a não ser para correr. Agora nem isso, porque os joelhos e os tornozelos voltaram a ser problema.

Querida tia Maria,

Nos últimos dois meses não houve um dia sequer que eu não me lembrasse de você: das nossas conversas ao longo de uma vida inteira, sobretudo nos últimos tempos, quando ia visitá-la nem que fosse apenas por uma tarde.

Ouço sua voz cristalina dizer, desabridamente, enquanto me abraça: “Ô, Sulamita, se você soubesse o quanto eu te amo!”

Eu sei, tia querida, sempre soube. E você bem sabe o quanto me sinto abençoada de contar com seu afeto, que sempre transbordou a caixinha.

Mesmo quando ele se traduziu em contrariar minhas vontades. Como quando me casei, quase menina, e você convenceu minha mãe de que “filha de viúva” tinha usar véu e grinalda para conter a boca do povo.

Foi feita a sua vontade, mas não foi o bastante para você conter a choradeira na igreja, você e minha sogra da vez. Parecia que que era meu velório, não meu casamento.

Ainda sinto o calor de seu abraço carinhoso, de seu sorriso largo, de seu jeito descompensado de ser feliz e de ser ranzinza.

São inesquecíveis as férias passadas em sua casa, desde Caetanópolis, naquela casa esquisita, de chão vermelho e paredes barradas de grená, que já tinha sido posto de saúde. Aos sábados era uma farra especial, quando jogávamos água pela casa toda para lavar o piso.

Tinha um pátio com um galpão lotado de máquinas velhas, e nós, sobrinhas e sobrinhos, e suas crias aprontávamos poucas e boas naquele espaço. Não sei como não fomos picados por bichos peçonhentos nem quebramos pernas e braços.

Você detestava a casa, mas ao menos era mais central do que aquela depois do hospital da cidade, beira-rio, em meio ao eucaliptal e chão de terra vermelha, o que tornava a lavagem de roupas um inferno em vida.

Lembro-me da nossa alegria em tê-la mais perto um tiquinho, em Sete Lagoas, quando o Quiqui comprou, e depois reformou, a casa que você moraria o resto dos seus dias, praticamente.

Os domingos eram uma romaria de irmãs e sobrinhos, e agregados, gato, cachorro e papagaio. A cozinha externa, com a mulherada em mutirão, mal dava conta do recado.

Inesquecível o alarido da sua separação do tio, após 30 anos de casamento e 9 filhos, fora os abortos, que foram cinco. Foi hasta pública, e toda a família participou de suas dores e queixas, sem saber como lidar com o carinho e a simpatia por seu ex, nosso Quiqui.

Você o acusava de querer tudo a tempo e à hora, sem dúvidas maus tratos a que se submete uma dona de casa nos moldes tradicionais, carregada de filhos e com marido tradicional, que até comida recebe no prato.

E fora as puladas de cercas “atrás das vagabundas”, nos seus termos. Não fazia a comparação, até porque havia diferenças inegáveis. Porém, quando a cotovia virava coruja, era inevitável  parear as semelhanças entre os dois maridos: o seu e o da sua irmã-parceira, dona Dirce minha mãe.

Há violências que são minimizadas pela conveniência familiar. Mas o espeto na alma dói tanto ou mais que a pancada no lombo.

A gente que via de fora achava que vocês levavam vida de romance, e até escapavam vez por outra para namorar, mesmo com a casa cheia.

Conversamos sobre isso várias vezes. E você negava.

Esbravejava diante do que considerava uma injustiça, que mesmo diante de toda prova em contrário, todos continuassem a amar o Quiqui. O que não levava em conta é que você também nunca deixou de amá-lo, por toda sua vida, embora o negasse.

Por isso, escolhi cantar para você os versos de Toquinho e Vinícius: “Eu sei que vou te amar”. Talvez não tenha sido justa, mas era a sua medida, a medida do seu amor de vida inteira. A medida do nosso amor por você.

Antes, Raquel leu uma carta de despedida, que fala de sua força e fé, testemunhada de corpo presente pelo seu grupo de orações.

Sua primeira neta, Daniela, reivindicou e se encarregou da homenagem final, trazendo à baila Fernando Brant e Milton Nascimento: “Maria, Maria”, a que “mistura a dor e alegria”, e “possui a estranha mania de ter fé na vida”.

Faz dois meses, neste 9 de outubro, que você se encantou. Andreia me enviou o “santinho”  com a reprodução daquela foto que está no porta-retrato na estante da sala de sua casa.

Tia Mariab

Até hoje não havia conseguido escrever a respeito. A não ser pela postagem curta que fiz no Instagram para não deixar sem registro.

Sei que você está em paz.

Até quem sabe, dona Maria da Glória! Obrigada pelo cuidado na longa jornada.

Fotos: Sulamita Esteliam

Foto-abre: Sulamita com tia Maria da Glória e a prima Eura, em restaurante em Sete Lagoas, MG/2019

Carrossel, última foto: Euzinha, a prima Lurdeca, tia Maria e a filha André∏ia, minha irmã Lili – 7 Lagoas, 2022

Vídeos: Raquel e Luiza Malaco/

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Postagem revista e atualizada em 10 e 11.10.2023: correção de erros de digitação e inclusão de legendas nos créditos das fotos.

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