De ganho: livro e a luz no caminho do crescer

por Sulamita Esteliam

Mudemos o rumo da prosa. Carece afrouxar um bocadinho, pois insisto em crer que há sempre uma esperança nos aguardando na esquina, disposta a um abraço com cheiro de frutas maduras, de vez ou frescas.

Dou um exemplo bem recente: carrego comigo o sorriso de uma garota negra, belíssima, que chegou à minha mesa de autógrafos na Bienal Mineira do Livro, no início do mês – pena que não tenho registro visual. Era pura aflição:

– Moça, por favor, me ajuda a encontrar este livro… – rogou, apontando o celular em tela aberta para mim.

Sequer percebeu que se tratava de uma autora em lançamento, e que havia pessoas, poucas, à espera de serem atendidas. Tinha urgência do que procurava, a urgência do que falta e não se sabe bem o quê. Aquela sede que só pode ser aplacada pela seiva que sustenta o dar conta de ser mulher em evolução, num mundo em ebulição troglodita.

Apontei para o fundo do estande da Multiverso – uma boa sacada da editora Leida Reis, da Literíssima e da direção da Câmara Mineira do Livro – que gestiona a Bienal: reuniu pequenas editoras, como a Comunicação de Fato, do amigo Marcelo Freitas,  num espaço de vendas coletivo, uma porta do lado para acesso de autores à feira. 

Pareceu-me que a garota temia não ser bem-recebida. Chamei o livreiro Daniel, que acorreu solícito:

– Olha só o livro que esta garota procura… – o rosto dele se iluminou.

– Não acredito. Parabéns, moça! Mas infelizmente não posso ajudá-la: não temos esse livro aqui em nosso acervo.

– Quem sabe no estande em frente, você encontra – interferi. É uma livraria das grandes, a maior de Minas, e está em todas as capitais do país – ao menos por onde tenho andado…

– Eu tentei, moça, mas nem me deixaram entrar. Disseram que o vale-livro não é suficiente para pagar esse livro. Eu disse que completaria o valor, mas fui praticamente expulsa de lá. E tem uma fila enorme para nós que vamos comprar com o vale-livro…

Acolhi a indignação da garota:  afinal, trata-se de direito concedido por políticas de incentivo à cultura, que esbarram na má vontade de operadores, embora tirem proveito da iniciativa. Ou isso, ou seus funcionários carecem de treinamento adequado, ou as duas coisas.

É preciso dizer, embora cada qual venda o peixe para se autovalorizar: o vale-livro é usado pelos municípios e estados para promover o acesso ao livro e estimular a leitura, muito bem; era o caso na Bienal Mineira do Livro.

Autores e livreiros se cadastram para a venda, intermediada pela organização da Bienal, com acerto posterior.

Ocorre que são projetos financiados por recursos federais, recursos públicos transferidos aos estados e municípios por meio de políticas definidas a partir das leis Aldir Blanc ou Paulo Gustavo, de fomento à cultura, por exemplo. É só buscar no Gov.br/Ministério da Cultura, que encontra a prova.

Naturalmente que há contrapartidas dos entes federados – estados e municípios, através de projetos culturais, mas ninguém diz de onde vem o dinheiro. Transparência deveria ser obrigatória no uso de recursos públicos.

Até porque, em quaisquer das vias, trata-se de dinheiro do contribuinte: meu, seu, nosso, da mãe e do pai da garota que tentava exercer seu direito de escolher o livro que queria ler, e tomara tenha realizado seu desejo.

E é bonito de ver: crianças e jovens de escolas públicas em alarido pelas ruas das bienais; antes de Minas, estive no Ceará. Um dos meus sobrinhos-netos mineiros, Marcelo Moreno, veio me contar, feliz da vida, que iria à feira com a excursão da escola. Para quem escreve é um alento.

 “O Livro de Dora e suas Irmãs – de afetos, fantasias, dores e silêncios” entrou no rol dos livros com acesso ao vale-livro na Bienal Mineira.

O cadastro exige descontos variáveis para adequar o preço à moldura da política pública: 40 reais para o alunado municipal, 50 reais para a rede estadual e 100 reais para professores de uma e outra rede. É a nossa parte no latifúndio da Literatura.

De volta à garota aflita, tentei seduzi-la, confesso: disse que ela poderia adquirir meu livro, que fala sobre mulheres, como o nome diz… mostrei-o.

– Você compra lá, com o Daniel ou com as meninas, usando seu vale-livro, e traz para Euzinha autografar – sugeri, abrindo meu melhor sorriso.

Ao que ela retrucou, quase em oração:

– Obrigada, moça. Seu livro é muito bonito, e deve ser muito bacana; mas se eu comprar seu livro, não posso comprar este livro, e eu preciso dele, você entende?

– Claro que entendo: eu também amo Simone de Beauvoir e “O Segundo Sexo” é, sim, um livro essencial para nós mulheres, fundamental para destruir mitos e abrir as perspectivas. E que bom que você está determinada a tê-lo, na verdade tê-los, porque são dois volumes. Boa sorte e boa leitura!

E a esperança saiu borboleteando pelas ruas da feira, em busca de seu nectar feminista.

Fez-me lembrar a Mafalda, personagem adorável do genial Quino, cartunista argentino.

*******

Fotos: Marina Nadu e Julio Teixeira

Charge que abre a postagem: Quino

 

3 comentários

  1. Que belo relato amiga!!

    Tomara mesmo que essa menina tenho conseguido, O Segundo Sexo, que tive a dita de lê-lo também e usa-lo como pauta em um dos quadros que eu apresentava no rádio, Sexo Verbal.

    amei essa parte: “dar conta de ser mulher em evolução, num mundo em ebulição troglodita”

    Parabéns Sulamita 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

    1. Ah, que bom tê-la por aqui, cara amiga! Obrigada pelo acesso e pelo comentário estimulante. Sim, digo que seu livro está a caminho. Postei segunda-feira, numa folga do chuvaréu que tem caído sobre o Recife. Só me esqueci de avisá-la.

Deixe uma resposta