O velho lôbo das águas

por Sulamita Esteliam
Quiqui, em 2002, pela lente da minha câmera - embaçada por fumaça engordurada de churrasco dois dias antes

Não tinha me apercebido que se passou tanto tempo. Ainda sinto o abraço caloroso que ele me deu quando fui visitá-lo em seu rancho à beira da represa de Três Marias, lá pelas bandas de Felixlândia, no grande tabuleiro roseano. Estava de férias em Minas, fui a Sete Lagoas ver minha tia Maria, como faço sempre que posso, e pedi ao primo Rômulo que me levasse até o paraíso do tio Quiqui.

Quando avistou o carro do filho, veio recebê-lo com a melhor cara do mundo. Mal pôde crer quando me viu descer do lado do carona: “Sulinha, é você, Sulinha, eu não acredito!” – exclamou soltando boas gargalhadas e correndo em minha direção. Parecia um menino, cujos cabelos embranqueceram antes do tempo.

Tio Quiqui me cingiu com seus braços fortes de pescador, e me rodopiou, falando e rindo sem parar: “Eu não acredito que é você, aqui, na toca deste velho lôbo…”

Foram apenas dois dias, mas de intensa cumplicidade, afeto, e muita prosa. Tudo regado a corvina frita, desespinhadas, cortada em filés e temperadas com maestria e carinho por sua companheira Carmem, que só então conheci. E, claro, uma cachacinha esperta e cerveja para lavar a boca, como é da lei.

Proseamos sobre tudo, mas principalmente sobre as reminiscências da minha infância, e da juventude – minha e dele. Contou para Carmem que me viu nascer, que lindo bebê eu fora, e de como ele me carregava para lá e para cá me exibindo feito bibelô. “A gente só devolvia ela para a mãe, quando ela berrava de fome – e como berrava! – ou quando sujava as fraldas, hehehe…”

Quiqui e Maria, ainda jovens e pais de nove filhos - foto capturada do FB da neta Luíza

“A gente” vinha a ser ele e minha tia caçula. Nasci uma semana antes do casamento deles, e o jovem casal brincava de boneca comigo. Assisti aos filhos deles nascerem, um a um, crescemos e trelamos juntos, os mais velhos; dos mais novos acompanhei os passos, como irmãos. Choramos juntos nossas dores. Comemoramos cada conquista.

Viveram juntos mais de 30 anos, tiveram nove filhos, e a casa deles sempre foi local preferido de reunião da família – e a nossa faz jus ao sobrenome Coelho. Ainda que boa parte, como eu, não o carregue na certidão de nascimento. Aos meus, aos nossos olhos de sobrinhos, pareciam um casal indissolúvel. Mas nada é que parece.

Quiqui se aposentou e, depois do divórcio, se refugiou no seu paraíso particular, cercado de mato e água, e passarinhos que se alimentavam em sua mão. Passou a fazer o que sempre gostou: pescar.  O que era lazer, opção de férias – às vezes subindo até o Xingu – passou a ser seu cotidiano, com carteirinha e tudo, excetuado o período do defeso ou quando a seca rareava o peixe na represa do Velho Chico.

Nesses tempos, usava sua habilidade com as mãos para transformar madeiras e outras matérias-primas disponíveis em utilitários e peças de artesanato. Gravador por profissão, trabalhou anos a fio numa mesma empresa: a Cia de Tecidos Cedro Cachoeira. Era dono de muitos talentos. Presenteou-me com uma de suas artes, a partir de cabaças: um conjunto de fruteira a e taças que ainda guardo em minha cozinha.

Quiqui, Joaquim Ribeiro por nascimento, tinha alma de artista. Escolheu, todavia, viver a vida na plateia, como bom aquariano.

Nos falamos outras vezes por telefone, mas aquele julho de 2002 foi a última vez que o vi. Tio Quiqui deixou de vez seu paraíso no fim da tarde da quinta-feira, 14 de julho, de infarto. Fez a passagem em Curvelo, para onde foi levado após um AVC. Agora habita o Universo, onde está a pescar estrelas. Que seja de luz sua trilha.

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