por Sulamita Esteliam
Se vivo estivesse, Célio de Castro, o “doutor Beagá”, teria completado 80 anos no 11 de julho. Tenho carinho especial pelo Ti-Célio, desde muito antes de ele tornar-se prefeito, dos mais queridos, da minha terra natal. Tive o privilégio de frequentar sua casa, como jornalista nas lides da cobertura política, mas também a partir da amizade com sua sobrinha, Virgínia Castro, colega de trabalho.
Desfruto da honra da assinatura de Célio de Castro, prefeito, ao lado da de Luiz Dulci, então seu secretário de Cultura, na apresentação do meu livro Estação Ferrugem – Vozes, 1998. Foi uma das publicações apoiadas pela Prefeitura de Belo Horizonte, no ensejo das comemorações do centenário da cidade.
Por tudo isso, me emocionei quando li, no Facebook, o texto que reproduzo mais abaixo, com a permissão ao autor, o colega jornalista, Maurício Lara, parceiro de muitas coberturas no final dos anos 80, início dos 90.
Lara foi assessor do prefeito em sua primeira gestão da capital mineira. Reeleito Célio de Castro, buscou outros horizontes em Brasília, para depois retornar à terrinha, onde mantém o Instituto Pesquisa e Comunicação. A pena, entretanto, continua a fluir macia… como podem constatar.
O depoimento está no livro que foi lançado, ontem, em Beagá, nos jardins do Palácio das Artes. Celebração à pessoa rara, íntegra, que foi Célio de Castro, homem que conseguiu a proeza de “enfiar a mão na massa e tirá-la limpa”, sua tradução do fazer política.
Degustem o texto de Maurício Lara:
O governador que Minas não teve
Um dos primeiros contatos que tive com Célio de Castro foi quando jogaram uma bomba na garagem da casa dele, no bairro Barroca, lá pelos anos oitenta. A razão: Célio prezava uma tal de democracia, isso desagradava muita gente e ainda havia resquícios da ditadura. Eu era repórter do Jornal do Brasil e vi os estragos que a bomba fez por baixo de um automóvel Voyage.
Voltei a ter notícia desse mesmo Voyage muitos anos depois, em 2000, durante a campanha de reeleição para a prefeitura de Belo Horizonte. Eu era, então, assessor direto do Dr. Célio. O carro estava na lista do patrimônio que ele registrara no Tribunal Regional Eleitoral e que os repórteres queriam conhecer. O Voyage e a casa da bomba eram as posses. Ele riu. “Isso não é mérito”. Do mesmo tanto que prezava a democracia, desprezava o patrimônio. Político diferente, esse.
Deve ser por isso que ele dizia: “Na política, o desafio é enfiar a mão na massa e sair com ela limpa”. Célio de Castro sabia que não precisava sujar as mãos para interferir na realidade. Sabia também, como ninguém, que era preciso conviver com os contrários, tanto os bem quanto os mal intencionados, tanto os de situação quanto os de oposição.
No texto que escrevi para o jornal Estado de Minas por ocasião de sua morte, usei uma passagem de Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, para ilustrar essa capacidade: “ser chefe, às vezes, é carregar cobras na sacola, sem concessão de se matar”. Como ele carregou cobras, sem temê-las e sem deixar que isso abalasse a autoridade, que exercia com voz mansa.
Célio carregava também uma pasta de couro. Lá dentro, uns papéis para despachar, um livro de Guimarães Rosa (sempre havia um) e algum outro livro muito novo, que ele encontrava na sua peregrinação por livrarias. Lia vorazmente. Gostava de falar do lera, do que aprendera. Logo ele, que tinha tanto para ensinar. E deixava atônito o interlocutor que, muitas vezes, sequer tinha ouvido falar do lançamento daquela obra. Isso acontecia comigo nos livros sobre Jornalismo. Eu que era da área, ele que me dava notícia. Do mesmo tanto que desprezava o patrimônio, ele prezava o conhecimento.
Com a mesma leveza e naturalidade com que conduzia reuniões com temas críticos e que tinham tudo para ser tensas, tirava os sapatos por baixo da mesa. Não gostava de se sentir apertado, nem acuado. Esperava com paciência a hora que considerava ideal para tomar as decisões. E tomava, com firmeza. Como quando os vereadores votaram uma lei permissiva sobre a verticalização da Pampulha. Ele reagiu: “Não enquanto eu for prefeito desta cidade”. E vetou, para desespero de auxiliares próximos, que temiam retaliações da Câmara Municipal.
A reação dele podia ser imprevisível, mas nunca era intempestiva. Agia com a razão, sem abrir mão do sentimento. Deve ser por isso que era tão sedutor. Isso não quer dizer que agradava a gregos e troianos, mas duvido que alguém conseguisse nutrir ódio por Célio de Castro. A convivência com ele era sempre um privilégio.
Carrego marcas da minha convivência com o Dr. Beagá. Em um aniversário meu, saiu do gabinete e foi até minha sala para me dar de presente um livro do Antônio Cândido, que comprara em um shopping, como costumava fazer quando saía caminhando pelo centro de Belo Horizonte, na hora do almoço. Mas ele estava mesmo era a caminho do Palácio da Liberdade. Na dedicatória, ele falava do nascimento das grandes amizades. Célio de Castro, que tinha tantos amigos, ficou encantado antes da hora. Logo ele, que foi o governador que Minas não teve.