por Sulamita Esteliam
Não era 10 horas, ainda, quando finalmente consegui sair de casa esta manhã, disposta a uma boa caminhada até a clínica de radiologia, onde deveria fazer mais uma radiografia panorâmica da face, a segunda do ano. A primeira perdeu-se nos atrapalhos da mudança. Dormitara dois meses sobre a cômoda do meu quarto, à espera de tempo e disposição para levá-la ao doutor que cuida do meu sorriso. Então, criou asas, ou mergulhou em alguma caixa de papéis. Que descanse em paz!
Não, não sou assim, tão, desorganizada, muito menos cordata. Tento manter um lugar para cada coisa, mas nem sempre as coisas estão em seus devidos lugares. Coisa de gente que tem muito, e mais, o que fazer, concedo. Melhor relativizar do que endoidar de vez.
Foi o que fiz com a tal radiografia. O que não encontrara tempo para cumprir, tornou-se urgente; então, decidi: melhor fazer outra. Tomei a atitude que não me dispusera antes para apresentar o resultado, agora desaparecido: marquei consulta e atravessei a cidade, simplesmente, para pegar novo pedido do exame.
Ontem fui à clínica, aproveitando uma saída para obrigações burocráticas da minha microempresa de assessoria. Faltava um quarto para o meio dia. A porta estava sem tranca, entrei. Havia meia dúzia de pessoas na sala de espera. De pé entre o balcão e a clientela, uma moça com cara de depois de amanhã barrou minha passagem:
– A essa hora é fechada…
– Como assim, a porta estava aberta, e esse mói de gente…!?
– É fechada… Volte às duas, e até as cinco e meia…
Voltei hoje pela manhã. Descobri que tinha que ser assim.
Havia alguém à minha espera, a 30 metros de casa: uma senhorinha, com menos de metro e meio, vestida com simplicidade. O lenço que lhe cobria a cabeça não escondia os cabelos brancos, ligeiramente crespos, num belo contraste com a pele tostada. Vi que ela abordava duas mulheres que seguiam em direção à praia, bem na esquina da beira-mar. Trocaram algumas palavras, as mulheres menearam a cabeça e seguiram adiante.
A senhorinha parecia meio atrapalhada. Voltou para olhar as costas das mulheres que se afastavam, verteu os olhos para o mar do outro lado da rua, através dos carros que passavam velozes em sentido contrário ao que ela viera, e ameaçou dobrar a esquina na perpendicular à avenida. Mas estacou quando me viu cruzar a rua em sua direção.
O semblante traduzia certa aflição, mas o olhar era esperto e os olhos sorriram para mim. Devolvi o sorriso:

– Moça, como é que eu faço para chegar em Casa Amarela?
– Casa Amarela é do outro lado da cidade, senhora. Vai ter que pegar um ônibus para a cidade, e lá no centro tomar outro para Casa Amarela…
– Não, eu vou de pés; atravesso a Ponte do Pina e vou cortando caminho por dentro…
– Desculpe, mas a senhora não consegue chegar em Casa Amarela a pé, é muito distante.
– Tenho que conseguir, moça. Tem um delegado me esperando lá até o meio dia…
– Impossível, ainda mais debaixo deste sol. Melhor a senhora pegar uma condução, ali, duas quadras acima.
– Mas…
– Se a senhora não tem, eu lhe dou o dinheiro da passagem de ida, e lá a senhora pede ao delegado a volta, combinado?
– Oh, Glória, encontrei uma filha de Jeová!
– Amém nós todos, vá com Deus.
E lá se foi a senhorinha, quase saltitante, guardando no bolso da saia a garça que lhe dei, não sem antes dizer que ia botar meu nome “no papelzinho”, e orar pela minha felicidade.
Ri. Não perguntara como ela se chamava nem lhe dissera meu nome.
Pensei: “Pode até ser 171, provavelmente, ela tem direito a condução de graça, mas isso já não é problema meu”.
Além do mais, digo a vocês que se dão ao trabalho de ler estas mal traçadas: pelo sim, pelo não, a senhorinha valeu a minha sexta-feira.
acreditemos na humanidade, né Sula
Sulamita! Que crônica apetitosa!
Escreva mais dessas!