por Sulamita Esteliam

O amigo Urariano Mota, escritor e jornalista, me envia acesso a mais um trecho extraído do seu próximo romance, O Filho Deserdado de Deus, a sair pela Boitempo Editorial – aqui uma palinha, publicada no blogue, mês passado. O que ele não diz, e a gente só descobre ao cabo da leitura no blogue da editora, é que o texto foi selecionado no Festival Internacional de Direitos Humanos, e vai percorrer 19 cidades latino-americanas em mostra.
Quando digo que nada mais parecido com mineiro do que um pernambucano, ainda duvidam…
Mulheres como uma certa Maria traz o retrato de “uma mulher pobre e sem vergonha de ser pobre, que pelo exemplo ensinou a não ter vergonha de nossa condição”. Retrato traçado pelo filho, já adulto, “homem culto”, mas com o olhar do “menino do beco”, órfão aos oito anos, que aprendeu a extrair gotas de felicidade de cada infortúnio. A certa altura, porém, o homem-menino se flagra em ato de renegar a própria mãe; e ao fazê-lo, a resgata em todo seu amor e inteireza.
“Como havia podido amar aquela mulher por tantos séculos num buraco de silêncio? Que covardia maldita era aquela de negar se negando? Acaso não era ele apenas um filho daquela gorda e vasta generosidade?”
Não é fácil ler Urariano. Seu texto é intrincado, de uma intensidade que desconcerta, queima e liberta a alma humana de sua pequenez. É literatura, das melhores.
Transcrevo um trecho:
Mulheres como uma certa Maria
Por Urariano Mota.* – Blog da Boitempo
Como um fenômeno de paralaxe as coisas não estavam onde pareciam estar. As estrelas miúdas de todos se deslocavam para outro lugar, distante e distinto daquele beco, longe da existência civil dos moradores, das roupas e feições apresentáveis. Era como se todos estivessem nus, mas a fazer de conta que não estavam. Havia os meninos do sapateiro cotó, que mais pobres saíam nus para a rua, descalços, porque afinal eram filhos do cotó. Ainda assim, nus como índios, não perpetravam a desgraça descortinada por dona Maria num certo sábado, ao evitar o sexo precoce entre crianças.
Mas a desgraça, para dona Maria, era outra desgraça. Quando ela contou para a sua melhor amiga ter evitado aquilo, ela se referia à desgraça moral, não tanto a uma penetração sexual na infância, mas pelo que ficaria por toda a vida na menina Ritinha. Era um ato além do dilaceramento físico. À distância, ele considerava que ela parecia adivinhar a curta vida, quando dirigia as forças para os valores de coragem, decência e da mais rasgada generosidade. Gente assim, pensaria muitos anos depois, tem um encontro com a eternidade do ser, mesmo quando vem, age e some rápido. A sua eternidade é um rastro de atos duradouros, ainda que guardados em passos íntimos. Se fosse compará-la a uma imagem mecânica, seria como uma ampulheta que virasse todo o conteúdo de uma vez, deixando uma permanência na retina infinda. Mas não é mecânico. Seria como o compositor Mozart, diria, 53 anos depois. Com esse Mozart, ele queria dizer para si mesmo que era um homem culto, que extrai conceitos das informações do mundo, que não era mais um menino do beco. E nesse movimento de vergonha se escondia no conceito. Mas o essencial era antes, o essencial era o primário das ações de dona Maria, atos jamais vistos pelos moradores do beco, que ele sentia e sentiria muitos anos depois.
Para os vizinhos, dona Maria era o que era, e com isso eles queriam dizer que ela era a sua pessoa física apenas, carnes, ossos e roupas. Deste modo e maneiras eles a viam: mulher – e aqui vai um gênero e universo de entendimento bárbaro -, gorda, baixinha, com um aspecto, ar, que não devia ser o da sua condição. Viam como um contrassenso absoluto que aquela pessoa, digo, aquela mulher gorda e baixa, não se desse conta da sua espécie de gente. Num tempo das divas glamurosas do cinema, num tempo de massacre da beleza anônima de subúrbio, dona Maria era, não passava de “uma albacora”. Cruas, essas palavras além da redução a um peixe, pois mulheres apenas se comiam e se tornar alimento era sua razão de ser, tal definição, difamação de Maria, amesquinhava-a numa coisa aquém do que entendiam o gênero feminino, pois era, além de mulher, gorda e baixinha, larga como as albacoras, que não eram uma dieta ideal aos comedores de carne bovina. Peixe gordo, congelado, a se comer apenas nas sextas-feiras santas, em sinal de penitência.
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*Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.
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