por Sulamita Esteliam
Descriminalizar ou legalizar o aborto? Seria ótimo se fosse esse o dilema das mulheres brasileiras que vêm no direito ao corpo, e portanto ao aborto sem culpa ou crime, condicionante para a emancipação da mulher.
O tema é polêmico, porque, culturalmente, encerra questões morais e religiosas, mesmo em sociedades onde a possibilidade de abordar uma gravidez indesejada não é crime. Mas não dá para fugir do assunto.
Até porque, ainda nas ditas civilizações – vamos chamar assim – mais avançadas, tais questões estão alicerçadas no patriarcalismo histórico, na opressão de gênero, raça, classe e etnia e sua consequente exploração.
Estão aí os Estados Unidos da América, obsessão do complexo de vira-latas tupiniquim, para não nos deixar mentir. É outro tipo de cultura, sob certos aspectos muito mais arcaica, conservadora, mas não foge à regra do machismo, da misoginia, do racismo, da discriminação social, de classe.
Sim, a liberdade de escolha e o direito ao corpo da mulher é também uma questão de classe social. São as mulheres pobres e negras as condenadas a morrer de aborto mal feito ou ir parar na cadeia por ter sido pega na prática de romper a gravidez indesejada.
Mesmo nos casos permitidos por lei: estupro, risco de vida para a mulher, anencefalia fetal. A Maria Joana que depende da saúde pública tem mais dificuldades em ter seu direito ao procedimento básico reconhecido, melhor, autorizado. Muitas pagam com a vida, ou carregam no ventre o filho morto, antes de consegui-lo.
Todos são iguais perante a lei, mas tem diferença. A Maria Antonieta, que pode pagar por um aborto profilático, tem mais chances de exercer seu direito ao próprio corpo.
Vi nas redes sociais esta manhã uma frase a compartilhar texto certeiro, curto e grosso, sobre o assunto, que reproduzo ao lado e acima. A criminalização do aborto, na verdade, condena as mulheres pobres, em particular as negras, à sequelas de saúde e não raro à morte – e também ao fogo do inferno.
O debate sobre descriminalizar ou legalizar o aborto está posto, de forma contundente, pela área do serviço social. Parte-se do princípio de que a descriminalização pura e simples não é suficiente para garantir à maioria das mulheres, aquelas que dependem do serviço público de saúde, o procedimento do aborto em condições seguras.
Nesta linha, a legalização do aborto coloca em pauta a soberania da mulher sobre seu próprio corpo, seu direito de decidir.
Não é uma questão semântica, pura e simplesmente. É interferir no que Lucila Scavone, socióloga que se dedica a estudos de gênero, define como “a força simbólica dessa interdição penal sobre o imaginário social e subjetivo de quem o pratica”.
Sem falar no que a interrupção da gravidez indesejada representa no quesito “realização da maternidade”.
Vamos combinar: quando ser mãe é uma imposição social, cultural e religiosa, parir deixa de ser condição natural da mulher para ser o ônus pela dádiva de fornicar.
Ou, como assinala a filósofa e escritora Marcia Tiburi, quando se coloca o aborto em questão, conclui-se que a liberdade das mulheres está sempre vigiada.
Dito de outro modo, no fundo, no fundo, o que está em xeque é a sexualidade feminina.
É como se nos dissessem: “direito de escolha, vírgula”.
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PS: As análises de Scavone e Tiburi encontram-se descritas em cartilha produzida pela Enesso – Executiva Nacional dos Estudantes do Serviço Social. Foi lá que capturei, também, a imagem fixada no alto desta postagem.