por Sulamita Esteliam
A imagem que o espelho me devolve é um embarque no túnel do tempo. Reconheço esse rosto em que a vida imprimiu cicatrizes, muito antes do calendário marcar o acúmulo dos anos e o relógio registrar o prolongamento das horas.
A indústria da juventude se preenche de etarismo para estimular e faturar em cima do autoengano: erguer o “despencar”, desviar o “bigode chinês”, esticar as “rugas”, preencher os “pés de galinha”, recauchutar a “flacidês”, subverter “papada”, levantar a bunda…
Traduz como defeito de idade a ser corrigido, o que de fato é o processo natural. Envelhecer é o pecado a evitar-se antes da morte, a inexorável – no prazo de cada qual. Pouco se me dá.
Ora, quem não quer envelhecer, que morra cedo. Euzinha estou de boa por aqui, do jeito que a vida quer.
É certo que a energia já não é a mesma, já não consigo fazer mil e uma coisas ao mesmo tempo, como sempre foi. Contudo, ainda há vigor suficiente para manter-me ativa. E não pretendo cruzar a fronteira tão cedo. Fico por aqui enquanto minhas pernas aguentarem.
O rosto que vejo agora é velho conhecido. É a imagem que projetava quando, lá pelos 9-10 anos, fixava o olhar no espelho incorporado à porta do guarda-roupas de casal no quarto da minha mãe, o único da casa.
Éramos cinco, e não tínhamos tanta roupa assim que não coubesse no espaço contido das quatro portas formatadas em madeira barata.
Começaria a trabalhar pouco depois, aos 11 anos, e adquirir outro armário para o meu quarto de solteira foi providência inadiável, em sofridas prestações mensais.
Adquirir sapatos novos e tecidos que minha mãe transformava em roupas charmosas para mim, minhas irmãs e irmão soava como prêmio de uma vida ainda tenra, mas recheada de privações decorrentes do dinheiro escasso e horizonte distante.
Nessa idade, quando já me achava uma mocinha, tinha curiosidade em saber como eu seria com o avançar dos anos. A perspectiva da velhice sempre foi minha companheira, assim como a escolha da profissão. O espelho era minha janela do tempo, a determinação o motor.
Nos reflexos em camadas na profundidade do espelho, eu vivenciava meu envelhecer e uma das imagens me mostrava exatamente assim, como sou, agora, aos 70 anos: uma velha de cabelos nevados, sorridente, assanhada, empática e feliz.
Eis a questão: a menina que se olhava no espelho ainda vive em mim, e não pretendo deixá-la morrer tão cedo. São da minha natureza a alegria e a energia, o pertencimento e o vigor.
Talvez tenha me tornado uma velha-menina porque na infância cobri-me de responsabilidades e a passagem pela adolescência quase me leva a fazer a travessia precoce, mais de uma vez.
Sofri na pele, literalmente, o que foi crescer com a dor da perda, que acabou se traduzindo em lesões a transbordar no corpo as feridas da alma, os pesares da existência.
Foi assim do começo ao fim da juventude: uma sequência de mazelas, que marcaram meu corpo e minha alma para sempre, mas que não foi capaz de me fazer desistir de seguir em frente, de amar e ser amada, de sonhar com outras paisagens, de cavalgar o vento.
E aqui estou, velha, elétrica e saudável. Ainda que, vez por outra, o oco do mundo me mande recados soturnos, desaforados. Aí me recolho para recuperar o fôlego e voltar à toda.
Na verdade, divirto-me, quase sempre. Colho como láurea o espanto, a admiração mesmo, das pessoas, sobretudo jovens, quando me vêm senhora de todas as minhas possibilidades.
Seja trajada nos trinques, maquiada, coberta de balangandãs, em cima do salto ou confortável no meu tênis ou sandália; de vestido, saia ou bermuda, de biquini e pés na areia, ou trabalhada na fantasia …
Euzinha ainda sou muito eu, me devolve o espelho. Não sou a rainha má nem temo a concorrência da Branca de Neve.
Gosto da brincadeira. Gosto de sambar, frevar, cantar e dançar todos os ritmos, tomar umas e outras, todos os dias – uma cachaça para almoçar, uma cerveja para dormir – e ainda tenho energia para muita folia.
Tomo banho de Lua, de chuva, de Sol, felizmente em boa e vasta companhia.
O maridão é bom parceiro, cúmplice de todas as horas, sem medo do Apocalipse. Filho e filhas são eventuais pares nesta dança da vida, e é uma benção quando é possível dividir a festa com netos, netas e bisneto.
Minha carne é de Carnaval, meu coração é igual. Sou bem como naquela canção dos Novos Baianos, composta e gravada por Paulinho Boca de Cantor, Moraes Moreira e Luiz Galvão, em 1972, quando eu tinha 18 anos e me casei pela primeira vez.
Gosto de música e gosto de gente, embora, muitas vezes, o ser o humano insista em negar-se como tal, mas não permito que essa raça ruim estrague o evento do meu existir.
Comunico-me com facilidade e gosto de trocar ideias e figurinhas com as pessoas que encontro pelo caminho, independentemente da idade. Envergo ou recolho o meu chapéu como quem faz mesuras na avenida.
Gosto de viajar – por terra, água e ar. Nasci com rodinha nos pés, e andei muito por aí, inclusive recentemente para celebrar o novo ciclo. Revi amigos e amigas, familiares, gente querida que as circunstâncias permitiram em menos de 20 dias entre Salvador e Belo Horizonte. Fiz novas amizades.
No meio do percurso, peguei uma virose, suponho que um rotavírus, que afetou filho, filha, netos e nora, como dominó em queda livre… Um por dia, ao longo de uma semana, o que me obrigou ao recolhimento. Sobrevivemos para contar a história.
A ocorrência encurtou as possibilidades de encontros na semana pré-Carnaval em Beagá. Passei rapidamente pelo Quem Ama não Mata, e pude rever muita gente que amo de outros carnavais. O bloco se reuniu justo no dia do aniversário de 7 anos dos meus netos gêmeos; restou-me conciliar.
Voltei para curtir o melhor Carnaval do Brasil, no Recife e nas Olinda, pronta para o que der e vier: ver Gilberto Gil e Mart’nália, em noites diferentes, no Marco Zero, me acabar nas ladeiras atrás do Eu Acho é Pouco e outros blocos mil…
Encerramos a temporada com o Urso PédeCana – circunstância que nos possibilita rever amigos, fora de enterros, na definição do Bob Leo, um amigo querido.

Sou grata à vida, pelo tanto que me tem dado.
Obrigada pela companhia e pelo acesso, a despeito dos longos intervalos. Estarei por aqui sempre que possível, com a pauta que mereça e apeteça.
Evoé!