Raízes do Brasil: beleza, luxúria e crueldade

por Sulamita Esteliam

Terminei por esses dias a leitura de “Boca do Inferno”, primeiro  romance da cearense Ana Miranda, prêmio Jabuti de 1989. História de um poeta satírico, sátiro e desbocado, pornográfico: Gregório de Matos e Guerra, dos tempos coloniais, o maior dentre os barrocos.

Crítico feroz dos poderes estabelecidos, embora ele próprio compusesse a máquina de moer gente, que traduz nossa história de ontem e de hoje. Boca de Brasa, seu outro epíteto, era filho de fidalgos portugueses.

Amava as mulheres, negras de preferência, e por elas era amado; embora delas se servisse para satisfazer o que a maioria dos homens ainda hoje considera para que servem as mulheres. A sensibilidade do poeta não traduz amor em equidade entre ele e suas paixões.

Miranda vai fundo na pesquisa e na formatação do tipo de gente, rastaquera e cruel, que se reproduz entre nós, como praga andaluz. Verdade histórica inalienável. No entanto, não esconde sua admiração pelo personagem central.

O roteiro parte do assassinato do alcaide-mor, no século XVII, que divide a Bahia luxurienta e podre, luxuriante, devassa – não existia Brasil ainda – entre perseguidores e perseguidos.

“Padrão que se tornou nacional, e que nossa história política e social conta desde tempos imemoriais.

Numa suave região cortada por rios límpidos, de céu sempre azul, terras férteis, florestas de árvores frondosas, a cidade parecia ser a imagem do Paraíso. Era, no entanto, onde os demônios aliciavam almas para povoarem o Inferno.

Gregório de Matos era, advogado, procurador. Nasceu na Bahia, estudou em Coimbra, morreu no Recife, aos 59 anos, vítima da mesma febre que levara Antônio Vieira, o pregador, na terra onde frutificaram ideias, sermões, pecados, preconceitos e gente torta.

Chegou a Pernambuco degredado, a partir de Angola, depois de expulso da terra que era seu alento e perdição, proibido de tornar à Bahia. Aqui, foi impedido de publicar seus versos satíricos. Manteve-se como advogado. Trabalhava nu, escrevendo aqui e ali, sonetos.

Comprei o livro há uns 10 anos num sebo de rua em Belo Horizonte, deixei-o em casa de minha filha, porque sempre carrego muitos livros e quitutes de raiz na bagagem. Há coisa de dois anos, ela me intimou a resgatá-lo. Andei com ele na mochila para lá e para cá, só agora li.

Há uma pilha de livros para ler, aliás. Confesso que deixo alguns furar a fila, passar na frente na espera da vez, seduzida pelo calor ou leveza do tema. Junto levo outros, mais densos, no vai da valsa, alternando a natureza da substância na mesa de cabeceira.

Enquanto isso, escrevo. E há as relidas, por força das circunstâncias, ou para reativar a memória da escrita, do meu próprio livro mais recente: no caso, O Livro de Dora e suas Irmãs – de afetos, fantasias, dores e silêncios, Comunicação de Fato Editora, 2024.

Há outros em fase de escrita, alternando contos e memórias; meu processo de criação segue o hábito de leitura, quase sempre múltiplo e inconstante.

E há duas obras em processo de edição: meu livro de poesias de uma vida inteira e outro infantil, regatado de 20 anos de gaveta, que têm exigido meu olhar mais atento.

Neste diapasão, venho lendo Jorge Luis Borges, Cuentos completos, em espanhol, há coisa de um ano, e sequer cheguei à metade. Terminei a primeira parte: Historia Universal de la Infamia.

Além do idioma estrangeiro, o estilo do autor argentino é denso, embora direto, objetivo, muitas vezes divertido. Tornarei à obra, quando avançar mais na leitura.

Este ano, entre uma viagem e outra para divulgar meu livro, li “Pensão das Crônicas Dadivosas”, de outro autor cearense, Ricardo Kelmer.

Texto crítico, no geral bem-humorado, muitas vezes debochado, compenetrado no que deve ser. E também transbordante do feminino, paixão evidenciada em toda a obra do escritor – um homem de alma feminina. Delícia de livro.

Ano passado, li pouco para meus padrões: dois livros de crônicas, um organizado, outro escrito pela amiga Ana Karla Dubiella, também autora cearense.

Em Pandemônio, autores nacionais retratam a pandemia de Covid 19 que nos devastou. Em A Morte do Xamã, as despedidas de pessoas queridas na vida da autora, ilustradopela filha Ilana Dubiela, que é designer.

Obras que emanam sensibilidade, e que inclui esta escriba em alguns relatos.

Um comentário

Deixe uma resposta