Mãe Ceição, nosso prisma

por Sulamita Esteliam*
Mãe Ceição, na única foto que tirou em estúdio, aos 65 anos

Minha avó, Mãe Ceição, se viva estivesse, completaria 114 anos neste 18 de maio. Partiu na manhã do dia 07 de agosto de 1983, meia hora antes de ser levada para o centro cirúrgico do Hospital Vera Cruz, em Belo Horizonte, onde lhe amputariam a perna, grangrenada por uma trombose. Tinha 86 anos. O atestado de óbito registrou embolia pulmonar, enfarte fulminante e esclerose. Todavia, estava absolutamente lúcida.

Horas antes, em outro hospital, em Sete Lagoas, estava no melhor de seus humores. Quando cheguei para visitá-la, prenha de seis meses de gravidez da minha terceira filha, sua 33ª bisneta, sorriu e piscou o olho esquerdo – o que ficava verde quando estava colérica. Aproximei-me de mansinho, segurei a mão dela, e tive que olhar para o teto para não chorar. Aquela era a avó que eu conhecia e admirava: estava indo embora e procurava consolar-me. Quando voltei a olhar para ela, piscou o olho, novamente – desta vez o direito, azulado pela idade, ou pelo exercício continuado da capacidade de enfurecer-se, agora adormecida. Sorriu, um sorriso cúmplice, com os dentes amarelados por anos e anos de tabaco, e brincou:

– Com essa barriga não dá para correr de coro…

– É, vovó, não dá mesmo; só com cachorro louco atrás.

Rimos as duas.

Minha mãe me contaria, depois, que, à noite, quando os médicos decidiram por transferi-la, imediatamente, para a capital, a colega de quarto entrou em surto. Reclamava a perda da companhia. Mãe Ceição sorriu e a tranquilizou:

– Se preocupa não, nós se encontra lá em cima…

Mulher forte e determinada esta minha avó, mãe da minha mãe. Era mulher da agulha, do fogão, da enxada, da carabina e do chicote – tudo manejado com destreza igual. Era ela quem dava as cartas em casa. Não sobreviveria mutilada.

Herdei de minha mãe, que saiu à Mãe Ceição, a memória fotográfica – de elefante. Apesar de analfabeta, minha avó tinha, por exemplo, sua própria versão da História do Brasil – detalhes pitorescos que não se encontram nos livros, mas que ela viveu, desde a infância, no sertão mineiro – e que gostava de contar, e eu de escutar.

Nascera no século XIX, quando a filhas mulheres era vedada a educação formal – mesmo que fosse a tosca educação reservada aos pobres, e da roça. Mas, aos 80 anos ainda cantava de cor a cartilha que ela ouvia, às escondidas – encarapitada no galho de mangueira no quintal da sua casa, na beira da Taboca. A escola ficava a meia légua de distância, mas o vento era seu cúmplice; trazia a cantoria até os ouvidos da menina Ceição – ávida de conhecimento.

Vovó, em frente a sua casa em Osasco, 1964. Em sentido horário, de pé, a sobrinha Dina; a filha caçula, Maria da Glória, com o quarto filho-Paulinho no colo; e o neto José, o 5º de Vitalina, a segunda filha, 1ª das mulheres; embaixo: a neta Raquel (3ª da Maria), o amigo Cassinho e o filho José, 6ª filho, caçula dos homens, com a sobrinha Andreia no colo (a 5ª de Maria, que teria outros quatro antes de encerrar a prole)

A despeito disso, conhecia os rudimentos da aritmética, o suficiente para reconhecer o preço dos legumes e verduras e carnes na feira; não saberia desenhar os números, mas fazia contas de cabeça. E regateava, sempre. Habilidade que a tornou conhecida dos feirantes de Osasco, na Grande São Paulo, para aonde se mudou no começo dos anos 60 do século passado, quando perdeu seu amado João, ainda em Caetanópolis. Sequer desconfiavam de que estavam diante de, como a própria Mãe Ceição se definia, “uma analfabeta de pai e mãe”.

Minha avó tinha 18 anos quando se casou com João Coelho, seu primo de primeiro grau. Moravam na margem direita do Rio das Velhas, zona rural de Jequitibá – lugarejo perdido nos arredores de Sete Lagoas, cidade conhecida como “Porta do Sertão”. Tiveram oito filhos, todos paridos em intervalos regulares de dois a três anos – metade homens, metade mulheres; minha mãe era a sétima.

Parecia encomenda – que ambos trouxeram ao mundo sozinhos, pois fizeram o parto dos próprios filhos.  A experiência acompanhou minha vó anos a fio: tornou-se parteira – de boa parte dos 47 netos e bebês vizinhos e, até, de crianças nascidas em acampamentos ciganos. Vim ao mundo através de suas mãos, assim como meu irmão e minhas duas irmãs. Só parou de exercer o ofício quando se mudou para São Paulo. Jamais cobrou pelo que fazia.

A saudade que eu tenho da minha avó é do tipo que enobrece a alma e aquece o coração.

************************************

Crônica inspirada em trechos do livro Estação Ferrugem, da autora – 1998, Vozes, em busca de reedição

Deixe uma resposta