Brincadeiras de criança e falta de graça na TV

por Sulamita Esteliam
Ilustração capturada no Blog do Tato, em matéria sobre o programa Ver TV, da TV Brasil, por ocasião do aniversário de 50 anos do Código Brasileiro de Radiodifusão

Sabemos que a televisão é um mal inevitável, ou quase. Digo que vivo muito bem sem ela. Talvez porque tenha crescido sem um aparelho de TV em casa -minha mãe, viúva, não tinha condições de comprar um. Assístiamos TV, entretanto, na casa de amigos; isso na década de 60 recebia o epíteto de “televizinha”.

E havia revesamento, para não cansar as anfitriãs – saudosas donas Irene e Gercina, e seus respectivos maridos, espécies de anjos-da-guarda das crianças mais carentes da velha Rua São Geraldo, no Bairro das Indústrias, periferia Oeste de Beagá; ali, onde Belo Horizonte e Contagem se confundem. Aprendemos muito sobre solidariedade com eles.

Ali cresci, crescemos eu, meu irmão e irmãs, e uma reca de crianças. Íamos e voltávamos juntos da escola, a pé, em bandos.  Inventávamos histórias, folguedos, peraltices e, até, mesmo amores. Brincávamos na rua – de queimada, finca, rouba bandeira, bente altas, pique, pegador de beijo, nego fujão. Jogávamos futebol, damas, jogo da velha, baralho. Trocávamos advinhas, travalínguas, anel, choros e risos.

Brincávamos no quintal – de herói e bandido, polícia e ladrão, de capa e espada, teatro, circo. Brincávamos de escalar a mangueira, as goiabeiras; de arriscar a atingir o primeiro galho dos pés de abacates que abundavam o quintal lá de casa, plantados por minha avó paterna, Liscínia e cuidados com afinco por tia Mundica. Não foram poucos os tombos…

Outros tempos, usos e costumes, que moldaram toda uma geração – nem melhor nem pior do que as que nos sucederam. Diferente.

Não, não acordei saudosista esta manhã. Embora esteja em Belo Horizonte, na região e bem próxima do bairro onde cresci, tais reminiscências me vieram à cabeça ao ler o Correio do Brasil, pela internet. Lá está artigo do sociólogo, jornalista e professor, Laurindo Leal Filho sobre a TV que nos é dada, desde há muito – e ao arrepio da nossa Lei Maior, a Constituição do Brasil. A propósito, vale à pena assistir ao programa Ver TV, apresentado por Leal na TV Brasil, todos os domingos, às 17:30.

Transcrevo, para não me alongar:

A síndrome Jango, aos 50

11/9/2012 14:33,  Por Laurindo Lalo Leal Filho – de São Paulo
Crianças fazendo perguntas de adultos para “celebridades” surgiu como nova atração da Bandeirantes nas noites de domingo. Concorria com Faustão, na Globo; Silvio Santos no SBT e Gugu na Record evidenciando que o controle remoto não serve mesmo para nada. Troca-se de canal mas o nível dos programas continua o mesmo.

O ex-presidente João Goulart vetou 52 artigos da lei de radiodifusão em favor das empresas midiáticas

O ex-presidente João Goulart vetou 52 artigos da lei de radiodifusão em favor das empresas midiáticas

A Bandeirantes tentou inovar, sair dos auditórios e das “escolinhas”, e acabou colocando no ar um programa chamadoConversa de gente grande que era, no mínimo, constrangedor.

Menores de 12 anos entrevistavam “celebridades” fazendo perguntas – algumas claramente formuladas pela produção do próprio programa – destinadas a provocar risadas nos adultos.

Para Alexandre Frota uma criança perguntou como tinha sido “a primeira vez” do artista. Outra quis saber se Sabrina Sato havia feito “o teste do sofá” para trabalhar na TV.

Como se nota a escolha dos entrevistados e das perguntas enquadra-se perfeitamente no artigo da Constituição que estabelece preferência, nos programas de rádio e TV, para conteúdos com “finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”.

Diante de tais fatos inúmeras pessoas voltaram a perguntar “o que fazer”? Infelizmente muito pouco. Não há a quem reclamar. No Brasil, ao contrário do que acontece nas grandes democracias do mundo, não existe um órgão regulador capaz de ouvir o público e dialogar com as emissoras.

A existência desse órgão foi prevista em alguns dos 19 ante-projetos de lei para o rádio e a televisão, elaborados desde os anos 1980, mas nunca levados ao Congresso. Continuamos praticamente com a mesma legislação que, no último dia 27 de agosto, completou 50 anos.

Os governos brasileiros sofrem, na radiodifusão, da síndrome Jango. Quando a lei entrou em vigor, João Goulart era o presidente da República. Ele vetou 52 artigos do texto aprovado no Congresso, a maioria favorecendo nitidamente os interesses dos radiodifusores. No entanto, de forma inédita, o Parlamento brasileiro derrubou os vetos presidenciais mostrando uma força que é até hoje inabalável.

Menos de dois anos depois, esses mesmos radiodifusores, aliados a outros setores da mídia, obtiveram uma vitória maior: derrubaram o presidente da República, integrados que estavam ao movimento civil-militar de 1964. Essa talvez seja a razão principal da timidez de todos os governos, desde então, de levarem adiante o debate em torno de uma nova lei para aradiodifusão.

Há 50 anos o Brasil tinha 71 milhões de habitantes e só 5% possuíam um aparelho de TV. Hoje somos quase 200 milhões e a televisão está em 98% dos domicílios. Hábitos, valores e costumes eram bem diferentes. A pílula anticoncepcional não havia sido inventada e nem a mini-saia virado moda. Era um pais rural, com 80% da população morando no campo. Hoje é o inverso mas a lei permanece a mesma.

Sem falar das diferenças tecnológicas. O video-tape era a grande novidade permitindo, por exemplo, que Chico Anísio contracenasse com ele mesmo. E os jogos da Copa do Mundo no Chile pudessem ser vistos aqui, no dia seguinte. Tudo em preto e branco.

Uma lei feita para aquele momento é incompatível com os tempos atuais. Por ser tão desatualizada não regula quase mais nada permitindo abusos. Como o aluguel de horários para igrejas, a propriedade de vários meios de comunicação por um mesmo grupo empresarial, a falta de diversidade nas programações, a renovação das concessões de rádio e TV sem debate público, entre outras aberrações.

Diante desse quadro, é óbvia a necessidade de uma lei de meios. Aliás ela já está pronta há muito tempo. Há contribuições, por exemplo, dos ministros Sergio Motta e Juarez Quadros, dos governos Fernando Henrique e, mais recentemente, do ministro Franklin Martins, no segundo governo Lula.

Mas aí entra em cena a síndrome Jango. O poder político das empresas de comunicação – ferozes adversárias das mudanças – atemoriza os governos, tornando-os reféns do atraso. E, o telespectador, vítima da TV, não tem a quem reclamar quando vê uma criança perguntando a uma “celebridade” como foi a sua primeira relação sexual.

 

Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial). Twitter: @lalolealfilho.

2 comentários

  1. Sulamita, curiosamente eu, que trabalho o blogue Mingau de Aço, estava fazendo pesquisas para um livro que escrevo sobre 1961 e li textos sobre a história da TV Itacolomi. É incrível que na época os mineiros se preocupavam em fazer uma TV para zelar por sua cultura, e já se sentiam ameaçados pela supremacia do eixo Rio-São Paulo através da rede (então formada por linques de transmissão numa “fileira” de antenas que repassavam o sinal pelas cidades) da TV Tupi do RJ e de SP. E olha que a televisão nessa época era de boa qualidade. Hoje ela está horrível e até a TV paga e a TV educativa já absorvem vários vícios da TV aberta.

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