por Sulamita Esteliam
Assunto inescapável ainda nesta Quarta-feira de Cinzas, a renúncia do Papa Bento XVI foi assunto de troça no Carnaval de Olinda, na terça. Há padres, freiras e cardeais, sempre, nas ladeiras da cidade. Mas, desta vez, as fantasias dos foliões agregavam placas que, sem pudor, apontavam possíveis “razões” – associadas à sexualidade – da renúncia, sem precedentes na história da Igreja Católica.
Um amigo brincou que Ratzinger fez o anúncio na segunda, 11, para aproveitar a terça gorda no sítio histórico e provar do Bacalhau do Batata no Alto da Sé, na quarta-feira ingrata… As impossibilidades não costumam reger as piadas. Coisas da folia…

Em Paris, as feministas do Grupo Femen, da Ucrânia, foram às ruas comemorar do jeito costumeiro. As manifestação se deu em frente à Cadetral de Notre Dame.
Irreverências à parte, o Papa, que não é pop, marcou para 28 de fevereiro sua despedida do papado. A atitude surpreendeu. De qualquer forma, a renúncia, prevista no Código de Direito Canônico, prova que nada neste mundo é imutável; ainda que a Igreja insista em sê-lo. E talvez aí resida boa parte do combustível a alimentar a decisão de Bento XVI, para além das razões de saúde, alegadas. Há muito mais.
“Em meio a um mandato marcado por tensões com outros líderes religiosos, novos casos de pedofilia envolvendo clérigos e a demanda por uma Igreja Católica mais aberta, Joseph Ratzinger vivia sob constante pressão. Algo que tornou-se mais evidente em delicados escândalos, como o do mordomo mandado para a prisão por revelar documentos que deixavam claro o jogo de poder nos corredores do Vaticano”, escreve Gabriel Bonis, em Carta Capital.
Vale à pena ler o que diz Saulo Leblon en Carta Maior. Na mesma agência, há também um perfil de Joseph Ratzinger e análise sobre o provável substituto aqui e aqui.
Não sou versada em questões teológicas. Portanto, limito-me a compartilhar crônica, também publicada em Carta Capital, assinada por Matheus Piconelli. Especula sobre outros motivos de Bento XVI jogar a toalha – dentre eles, a velocidade das comunicações turbinadas pela Internet e pelas redes sociais.
Transcrevo:
Se não está fácil para o papa…
Publicada em 11.02.2013
Vamos combinar: não está fácil ser papa hoje em dia. Quando Joseph Ratzinger foi escolhido para comandar a Santa Sé, em 2005, as ferramentas que mudariam os canais de interlocução entre o público e as autoridades eram ainda uma novidade. Havia internet, havia uma cobertura intensa do conclave, havia todo tipo de análise de todos os calibres sobre o futuro da Igreja. Mas os impactos das novas tecnologias ainda não faziam estragos (não tão rapidamente) como acontece nos dias de hoje.

Bento 16, sem o carisma do antecessor João Paulo II, tinha nas costas não apenas a missão de estancar a hemorragia de fiéis num tempo de convicções seculares, mas também a de atrair um público jovem cada vez mais conectado, cada vez mais ativo, cada vez menos interessado em verdades inabaláveis. Não foi por outro motivo que o papa aderiu ao Twitter, um púlpito bem diferente daquele a que todos os antecessores, a começar por São Pedro apóstolo, haviam reinado.
Oficialmente, a renúncia de Joseph Ratzinger é explicada pela saúde debilitada. Há relatos sobre ordens médicas para que evitasse grandes deslocamentos para se poupar. Em livro de memórias, ele já havia manifestado o desejo de deixar o pontificado caso a saúde limitasse sua missão. É uma explicação plausível, dada a idade avançada do sumo pontífice (ele tem 85 anos). Mas há também de se levar em conta a discrepância entre a missão herdada e a capacidade de Bento 16 conduzi-la.
Leia mais:
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“Habemus?” O papa indeciso de Nanni Moretti
Os canais de interlocução que ora eram anunciados como pontes entre a Igreja e os novos tempos são as mesmas a expor as fraturas de uma instituição combalida. Os inúmeros, incontáveis escândalos sexuais e outros desvios protagonizados por quem detém, supostamente, o monopólio da fé, da bondade e da caridade hoje não permanecem mais de dois minutos debaixo do tapete. As reações também. Não à toa, em seu pronunciamento, o pontífice se mostrou assustado com a velocidade das mudanças pelo mundo. Enquanto isso, a Igreja muda seu percurso na velocidade de um transatlântico: os avós de hoje rezavam a missa em latim, mas os avós de amanhã seguem repetindo orações prontas, como cordeiros passivos em celebrações dominicais de ritos engessados nos quais a lógica e o confronto, tão caros mundo afora, parecem ignorados entre as paredes de uma igreja.
O resultado é que, embora conectados a ferramentas atualizadas de comunicação, o papa e sua Igreja seguiram com um velho discurso construído em dogmas e tabus pouco atualizados do século primeiro até aqui. Num mundo que pede igualdade de oportunidades, direitos e deveres, o papa discorria sobre os “perigos” do casamento gay e condenava os avanços que tornaram a humanidade melhor e mais livre em relação a tempos remotos (como a camisinha, a pílula e o desapego às instituições familiares e patriarcais). Não que este anacronismo estivesse ausente em postulados recentes; é que, antes, as tecnologias não permitiam tal assimilação.
Como o papa relutante de Nanni Moretti, que em seu Habemus Papam parecia ter previsto uma fábula sóbre o vácuo de liderança do mundo atual, Bento 16 pode ter se dado conta de que sua posição não o tornou imune ao escrutínio humano. Num passado recente, a aura em torno de uma autoridade e seu circulo de asseclas eram barreira protetora diante das demandas e manifestações populares. De longe, nem sempre era possível avistar o tamanho de possíveis encrencas. O exercício de poder era (é?) um exercício de autoilusão até que alguém da rua gritasse que o rei estava nu. Hoje este grito parte de todos os lados e a distância entre reis e súditos praticamente inexiste. Os canais de interlocução criam reações automáticas, assustadoramente rápidas até para nativos digitais. Em outras palavras: aqui se paga o que se fala, o que se escreve. E nunca foi tão fácil descobrir o quanto um líder é amado ou odiado fora do púlpito.
Se em algum momento o papa Bento 16 se perguntou “que rei sou eu”, a internet e outros canais não o deixaram sem respostas, estas que faltam na Bíblia e sobram nas ruas.
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Clique para ler como se dará a escolha do próximo papa.
Seguem dois vídeos sobre o filme Habemus Papam, do italiano Nanni Moretti, com Michel Picolli, que, de certa forma, antecipa a renúncia papal.
1. Cena do filme, embalada pela voz caliente de Mercede Soza:
2. O trailler do filme – legendado:
3. A música completa da cantora latino-americana/argentina:
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Postagem revista e atualizada em 13.02.2013, às 16:31, e em 14.02.2013, às 10:44, hora do Recife.
