por Sulamita Esteliam
Para compensar a ausência na sexta, vamos de overdose de Drummond. O poeta teria feito 118 anos neste 31 de outubro, Dia das Bruxas, Dia do Saci.
Euzinha, que sou bruxa desde o ventre da mãe dona Dirce que me pariu, dispenso a fantasia.
Proponho então, uma overdose de poesia – objeto do Leitura Literária compensatório lá no canal A Tal Mineira TV no Youtube:
OVERDOSE
Na trilha das bruxas e bruxos,
acordei
com desejos
de overdose
– de Drummond.
Poesia na veia,
em teia
de emoções
que
não embaçam
os olhos,
mas aguçam
os sentidos,
desanuviam
o coração.
Nesses tempos
sombrios,
esquisitos,
poesia é frescor.
Vem, Carlos!
Desafogar
essa fissura
de vida
em verso
e prosa.
(Sulamita Esteliam – outubro 2020)
Leitura Literária: Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa-Poesia/Boitempo, Nova Aguilar, RJ, oitava edição, 1992
✓INICIAÇÃO LITERÁRIA, pág. 549
LEITURAS! Leituras!
Como quem diz: Navios… Sair pelo mundo
voando na capa vermelha de Júlio Verne.
Mas por que me deram para livro escolar
a Cultura dos Campos de Assis Brasil?
O mundo é só fosfatos – lotes de 25 hectares – soja – fumo – alfafa – batata-doce – mandioca –
pastos de cria – pastos de engorda.
Se algum dia eu for rei, baixarei um decreto
condenando este Assis a ler a sua obra.
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✓FIM, pág. 549/50
Por que dar fim a histórias?
Quando Robinson Cruzoé deixou a ilha,
que tristeza para o leitor do Tico-Tico.
Era sublime viver p\ara sempre com ele e com Sexta-feira,
na exemplar, na florida solidão,
sem nenhum dos dois saber que eu estava aqui.
Largaram-me entre marinhos-colonos,
sozinho na ilha povoada,
mais sozinho que Robinson, com lágrimas
desbotando a cor das gravuras do Tico-Tico.
✓ASSINANTES, pág. 550
SOMOS LEITORES do Tico-Tico.
Somos importantes, eu e o Luís Camilo.
Cada um em sua rua.
Cada um com sua revista.
O que um sabe, o outro sabe.
Ninguém sabe mais do que sabemos.
É nossa propriedade Zé Macaco.
Jagunço vai latindo a nosso lado
e Kaximbown nos leva
convidados especiais ao Pólo Norte.
Nossa importância dura até dezembro.
Temos assinaturas anuais.
✓PRIMEIRO CONTO, pág. 548
O MENINO ambicioso
não de poder ou glória
mas de soltar a coisa
oculta no seu peito
escreve no caderno
e vagamente conta
à maneira de sonho
sem sentido nem forma
aquilo que não sabe.
Ficou na folha a mancha
do tinteiro entornado,
mas tão esmaecida
que nem mancha o pape,
Quem decifra por baixo
a letra do menino,
agora que o homem sabe
dizer o que não mais
se oculta no seu peito?
✓O CAVALEIRO, pág 546
À MEIA-NOITE, como de costume,
passa o Cavaleiro
todo de fero e horror. Passa ou não passa?
Duvido. (E tenho medo.)
Hoje não durmo. Hei de escutar
o som das ferraduras na gelada
Rua Municipal,
o estalar do chicote na garupa
do cavalo-fantasma.
Escuto, protegido
em cobertor de casa-fortaleza
de família importante. Passa, passa,
anda, passa, Cavaleiro, estás com medo
do medo meu, quem sabe, da garrucha
do Coronel?
O Cavaleiro anda atrasado.
Vai esperar o sono me vencer
para aparecer dentro do sono?
Chego à anela. A branca
escuridão (o frio é branco)
não filtra nem um grilo de ruído.
Massa de cidade e serra: breu silente.
Boca seca, trêmulo,
não vejo o Cavaleiro, estou ouvindo
em mim o Cavaleiro, em mim é que ele passa,
sempre passou e passa sempre enão acaba
de passar. É isso. Vou dormir.
Dou descanso ao cavalo e ao Cavaleiro.
✓15 DE NOVEMBRO, pág. 458
A PROCLAMAÇÃO da República chegou às 10 hotas da oite
em telegrama lacônico.
Liberais e conservadores não queriam acreditar.
Artur Itabirano saiu para a rua soltando foguete.
Dr Serapião e poucos mais o acompanhavam de lenço incendiário no pescoço.
Conservadores e liberais recolheram-se ao seu infortúnio.
O Pico do Cauê quedou indiferente
(era todo ferro, supunha-se eterno).
Não resta mais testemunha daquela noite
par contar o efeito dos lenços vermelhos
ao suposto luar
das montanhas de Minas.
Não restam sequer as montanhas.

✓PRETÉRITO-MAIS-QUE-PERFEITO, pág.444
JUSTIFICAÇÃO
NÃO É FÁCIL nascer de novo.
Estou nascendo em Vila Nova da Rainha,
cresço no rasto dos primeiros exploradores,
com esta capela por cima, esta mina por baixo.
Os liberais me empurram pra frente,
os conservadDestaqueores me dão um tranco,
se é que todos não me atrapalham.
E as alianças de família,
o monsenhor, a Câmara, os seleiros,
os bezerros mugindo no clariscuro, a bota,
o chão vendido, o laço, a louça azul chinesa,
o leite das crioulas escorrendo no terreiro,
a procissão de fatos repassando, calcando
minha barriga retardatária,
as escrituras da consciência, o pilão
de pilar lembranças. Não é fácil
nascer e aguentar as consequências
vindas de muito longe preparadas
em caixote de ferro e letra grande.
Nascer de novo? Tudo foi previsto
e proibido
no Antigo Testamento do Brasil.