De primavera, mídia e poder

por Sulamita Esteliam
Praia de Boa Viagem, Recife-PE – SE

Deveria, aqui, desde sábado, saudar a chegada da primavera. Mas é pleno verão no Recife, e o fim de semana foi de praia, luminosa. Estava com saudades das águas tépidas destes mares, depois de 20 dias de secura em Beagá, com a umidade do ar na casa dos 12 e um calor desértico, sem vento. Bastou partir, e a chuva caiu por lá, graças!

Tomei benção a Iemanjá no sábado, mas no domingo só fiz olhar à distância, da pequena fresta ao arremedo de veneziana no meu quarto; fui pega por uma gripe que de há muito não me acometia; meu parceiro também. Creio que nosso organismo acusou a mudança climática – ou estamos, definitivamente, com os pés na PVC…

Aproveitei para, entre uma soneca e outra, fazer palavras cruzadas -um vício de antanho – e colocar a leitura em dia, para além do que me traz a rede. Folheei números atrasados da revista Carta Capital, que assino, e li o exemplar da semana,  de fio a pavio. Traz Lula de alvo na capa e analisa os mais recentes ataques ao ex-presidente mais popular da história deste país, não obstante eterno sapo barbudo.

A revista pilotada por Mino Carta é a única semanal nativa passível de leitura – aqui a versão digital. O resto é esgoto, que tenta arrastar nossa sofrível autoestima e sanidade nos dejetos do jornalismo que pratica.

Busco, porém, artigo do jornalista e professor Leandro Fortes, colunista de Carta Capital, publicado no sítio da revista dia 17  – reproduzido, também, e ilustrado pelo Conversa Afiada. O assunto é mídia e poder ou vice-versa, mas há um quê de primavera a iluminar o futuro.

Transcrevo:

Dilma começa a acordar

Leandro Fortes*

Quando Dilma Rousseff se vestiu para ir à festa de aniversário de 90 anos da Folha de S.Paulo, logo depois de assumir a Presidência, em 2011, eu fui um dos poucos a reagir publicamente na imprensa. Mesmo entre os blogueiros progressistas, lembro apenas de outra voz dissonante a reclamar da atitude servil da presidenta, a da historiadora Conceição Oliveira, do blog “Maria Frô”. De resto, o gesto foi forçosamente saudado como um ato de estadista, de representação formal do governo e do Estado brasileiro junto a uma “instituição” nacional, no caso, o conservador diário instalado na rua Barão de Limeira, na capital paulista. O mesmo diário que, meses antes, estampara uma ficha falsa de Dilma na primeira página, com o objetivo de demonizá-la como guerrilheira e assassina e, assim, eleger o candidato do jornal, José Serra, do PSDB.

Não é difícil compreender, contudo, o que pretendia Dilma ao aceitar fazer parte da noite de gala da família Frias. Terminada a Era Lula, a presidenta se viu na contingência de criar uma rede própria de relações na mídia, com quem imaginou ser possível firmar um acordo de civilidade. Lula, a seu tempo, também caiu nessa esparrela. Mas nem a experiência do governo anterior, nem as baixarias encampadas pela mídia na campanha de 2010, ao que parece, foram capazes de convencer Dilma da inutilidade desse movimento.

A mídia que aí está, protegida pelas cidadelas dos oligopólios e por uma adestrada bancada parlamentar de vários níveis, nunca irá se conciliar com um governo de cores populares, de ligações esquerdistas, mesmo esse esquerdismo envergonhado do PT. Essa mídia tem como única agenda a defesa do grande capital, do latifúndio e do liberalismo econômico predatório regulado pelas forças do mercado. É uma mídia constrangedoramente provinciana, mas absolutamente descolada da realidade brasileira, ignorante da força dos movimentos sociais e nutrida, cada vez mais, por jornalistas pinçados da mesma classe média que acostumou a paralisar pelo medo. E, em muitos casos, por experientes jornalistas cooptados pela perspectiva de visibilidade e uma aposentadoria tranquila, às favas com os escrúpulos, pois.

Dilma, por sua vez, protege-se dessa discussão por trás do escudo da “gerentona”, da presidenta voltada para a administração da infraestrutura e da saúde econômica do país. Pouca ou nenhuma atenção dá ao alvoroço golpista diuturnamente organizado, ainda que no modelo cucaracha mais do que manjado aqui consolidado no esqueminha Veja-Jornal Nacional-Folha-Estadão-Globo, com o suporte diário dos suspeitos de sempre plantados nas trocentas colunas de opinião a serviço do pensamento único ditado pela direita brasileira.

Foi preciso um tapa na cara dado, vejam vocês, pelo gentil Fernando Henrique Cardoso para Dilma Rousseff, enfim, esboçar uma reação – e, possivelmente, entender o que está se passando no país que existe além da calçada do Palácio do Planalto e das planilhas sobre evolução da base monetária. Resgatado temporariamente do esquecimento, FHC foi alçado ao patamar de boneco de ventríloquo para falar o que nem mesmo a mídia, em toda sua fúria conservadora, tinha tido coragem até então de por em palavras: Dilma seria vítima de uma “herança pesada” de Lula.

Isso vindo de um presidente que quebrou o país três vezes, submeteu a nação ao FMI, permitiu um apagão energético, foi reeleito graças à compra de votos no Congresso e deixou o cargo com a popularidade no rodapé.

Expor FHC ao ridículo e, ao mesmo tempo, incensá-lo com longos textos laudatórios faz parte de um paradoxo recorrente na imprensa brasileira, também descolada cada vez mais de um artigo de luxo: o jornalismo. A capa da Veja com Marcos Valério de Souza, vermelho como um pobre diabo, a acusar Lula é mais um movimento desesperado para interditar o ex-presidente, justamente quando ele trabalha para eleger candidatos do PT Brasil afora. O texto, baseado em frases atribuídas a Valério, ainda que viesse mesmo da boca do publicitário mineiro, é parte de mais um rito dessa polca golpista entoada por uma estrutura de comunicação viciada e moribunda.

O mais curioso, no entanto, é a revelação feita pela Folha de S.Paulo sobre os gastos oficiais de publicidade federal com essa mídia tão liberal e amante da livre iniciativa: as Organizações Globo ficam com um terço de todo o dinheiro do tesouro nacional disponível para propaganda; as dez maiores empresas do ramo, com 70%. Ou seja, são financiados para fazer panfletagem política de quinta categoria.

Sem essas tetas generosas do governo ao qual achincalham por encomenda, todas essas portentosas instituições da imprensa nacional e seus zelosos colunistas, estes, lacrimosos paladinos da liberdade da expressão e do livre mercado, iriam à bancarrota. Todas, sem exceção.

Na semana passada, Dilma cancelou de última hora a presença em um evento da revista Exame, a quinzenal de economia da Editora Abril, em São Paulo. Alegou “motivos familiares”, mas já havia sido avisada da patranha da Veja. Mandou o ministro Guido Mantega, da Fazenda, em seu lugar. No meio do evento, Mantega se levantou e foi embora. No mesmo dia, instigada pelos donos, a cachorrada hidrofóbica instalada no esgoto da blogosfera se autoflagelou, histérica.

Já é um começo.

* Jornalista, professor e escritor, autor dos livros Jornalismo Investigativo, Cayman: o dossiê do medo e Fragmentos da Grande Guerra, entre outros. Sua mais recente obra é Os segredos das redações. É criador do curso de jornalismo on line do Senac-DF e professor da Escola Livre de Jornalismo.

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