por Sulamita Esteliam


Deixei para o último dia de novembro, mês da Consciência Negra, postagem que guardo desde o início do mês, com o cuidado de quem guarda um tesouro. Homenagem às raízes de Zumbi dos Palmares, na Mama África que a todos nós bafeja.
Segura, que lá vem a crônica:
Quando abril chegar, ano que vem, Ajayi (lê-se Aidjadji) Oluwasola voltará a pisar, pela primeira vez após 15 anos, em solo nigeriano. Contou cada dia, mês e ano, e guardou cada centavo que conseguiu, e se permitiu, para a viagem de volta.
Quinze anos. É o tempo que a legislação brasileira requer para lhe assegurar o passaporte e o direito de ir e tornar.
Levará mulher e o casal de filhos, brasileiros, para conhecer a ancestral que o pariu, e que ele deixou em Abudja, a capital federal, em 1999, quando veio estudar Biologia no Brasil; mais precisamente, na Universidade Federal Rural de Pernambuco, em Dois Irmãos, entorno Norte do Recife.
“Vou rever a minha mãe. Estou com saudade, muita saudade”, diz firmemente – num português claro, que evoluiu significativamente nos oito ou 10 anos que nos cruzamos na parte do Pina desta Praia de Boa Viagem.
Note que acrescenta a palavra única da nossa língua-pátria: “saudade”. Mas ainda guarda ligeiro sotaque da língua inglesa, natal-colonizada, que se sobrepôs a dúzia e meia de idiomas-raiz de torrão da África Ocidental, que divisa com o Niger e Begin, jamais esquecido; não dialetos que, provavelmente, são outros quinhentos.
Ezekiel é seu nome de batismo, e é assim que o conhecemos. Nós, veneradores de seu robusto purê de macaxeira cozida na manteiga, puxado no alho crocante, mas sem leite – acompanhamento perfeito para o camarão ao alho e óleo, carne de sol ou calabresa, ou um misto desses acepipes; tudo bem acebolado e atomatado, e servido com trilha sonora das ondas do mar…. Pode requisitar pimenta, se quiser.
De quinta a domingo, no verão – que nestas plagas começa em setembro – e nos finais de semana de inverno que Iansã concede guardar o choro, ou a ira, para horas precisas – lá está ele, ébano sob imaculado uniforme branco, que inclui boné e um indefectível sorriso de arcada inteira, perfeita.
Quem aqui vive ou vier, haverá de encontrá-lo no circuito que vai do início do 2º Jardim até as quadras de tênis; particularmente nos domínios da barraca da Genilda e do Pingo, garantia de cerveja gelada e atendimento gentil. É exatamente aí que a gente se frequenta.
O carrinho que sangra a areia, e é sua cozinha ambulante, também é alvo, e dispõe de aqueduto que garante a higiene de ingredientes e panelas – manipulados, ali, aos olhos da clientela encantada.
Não tem para quem quer… para usar uma expressão característica recifense. Minha mana caçula, gourmet convicta, diria: “é pra salivar…”
Engana-se quem pensa que a mãe ensinou Ezekiel a cozinhar, embora a memória afetiva, seguramente, contribua no tecer do paladar. Aprendeu no se virar, no Recife, quando minguou o tempo de hospedagem na Casa do Estudante, e a bolsa que era parte do governo de seu país no intercâmbio furou…
“Meus colegas voltaram pra Nigéria. Eu disse: para lá não volto, quero ficar. Então, busquei trabalho. Comecei lavando pratos, depois fui atendente de balcão, garçom… da cozinha para o salão, e do salão para a cozinha, aprendi a cozinhar, gostei e fiz disso o meu ganha-pão.” (Olhaí o brasileirismo militante do nosso africano, novamente …!)
Já então conhecia “a galega” que hoje é a mãe de seus filhos.
Desistiu da graduação científica. O diploma em Letras da universidade nigeriana não foi e não é empecilho para ganhar a vida no trabalho duro sob o sol, nem lhe roubou o sorriso fácil e o trato habilidoso com as pessoas.
Morou em palafita, em casa emprestada, depois alugada na comunidade do Bode e em Brasília Teimosa. Na Beira Rio comprou um barraco de tábua de um colega de faculdade.
Há cerca de quatro anos as palafitas foram removidas para ceder lugar a um templo de consumo que consome o mangue. Ezequiel e seus vizinhos foram inscritos no programa Minha Casa Minha Vida.
Na cerimônia de inauguração do conjunto habitacional, ligo a TV e lá está nosso amigo nigeriano, cidadão brasileiro, recebendo as chaves e o abraço de ninguém menos que a presidenta da República, Dilma Roussef.
“Você viu que honraria? Me inscrevi e fui sorteado… A vida é muito boa para mim.”
Para Ezekiel, não há lugar melhor para se viver do que no Brasil. Só uma coisa ele, confessa, não faria de novo: montar um restaurante. A tentativa de sair da praia se frustrou graças a um velho hábito do brasileiro: “Não dá certo, só querem comprar fiado. Tô fora!”
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Postagem revista e atualizada em 03.12.2013, às 9:00, hora do Recife.
