por Sulamita Esteliam
Chegou à minha caixa de correio eletrônico, via Rede Mulher e Mídia, a notícia sobre o primeiro evento na Arena Amazônica, agora que está fora do calendário dos jogos da Copa: a bola passa a rolar no torneio de peladas do Amazonas, em que o destaque nas preliminares é o concurso para escolha de “Rainha do Peladão”.
O que espanta não é que torneio e concurso existam desde 1973, e reúna centenas de times e candidatas. Afinal, a pelada continua sendo a prática esportiva e o lazer mais acessível às camadas populares no Brasil. E os concursos de misses resistem aos ditos novos tempos e ao feminismo. Por que não na Amazônia?
Assusta, sim, um detalhe, considerado natural pelos organizadores: até meninas de 12 anos podem participar. Pelo visto o ECA não alcança a floresta.
Na página do evento no Facebook, vê-se que o torneio inclui a categoria feminina, e “preocupações sociais”.
A matéria sobre o Peladão e suas “rainhas matadoras”, publicada pelo sítio UOL mais parece propaganda do evento, com altas doses de preconceito mal-dissimulado em ironia. Exalta, como ideia “de gênio”, a mistura futebol com mulher, padrão “curvas desde menina”, e “bonita e de boa altura”, segundo os organizadores.
No entender da reportagem, este o menu preferido dos brasileiros.
Transcrevo um trecho:
“A fileira interminável de mulheres parece saída de um desvario adolescente. A camiseta do time é amarrada na cintura para mostrar cintura, quadril e barriguinha. Pernas e bundas são besuntadas com óleo de amêndoa para ressaltar os dotes. O resto é um biquíni mínimo e muita maquiagem nos rostos de fortes feições indígenas.
Cada time inscrito é obrigado a ter uma rainha, e ela deve desfilar na abertura do torneio. Caso contrário, é eliminado sem mesmo entrar em campo. Só times formados por evangélicos podem dispensar o desfile de sua musa de biquíni.
Como qualquer um pode se inscrever, levando ao extremo a ideologia nacional de que todo mundo é um jogador de futebol, o time de gordinhos Barra Pesada F.C., por exemplo, inscreve sempre a miss mais cheinha de todas.”
É de chorar.
Com o adendo da “tradição”, nada diferente da tentativa de cafetinagem protagonizada pelo apresentador global, Luciano Huck nas redes sociais, semana passada. O “bom samaritano” se dispôs a intermediar “gringos” para “cariocas solteiras” (ao lado).
Refluiu diante da repercussão negativa, mas foi denunciado junto com a sua emissora –aqui e aqui.
Que a cabeça brazuca funciona, quase sempre, abaixo da linha da cintura, a gente sabe, e até se gaba disso. Embora não seja prerrogativa destes trópicos, mesmo no departamento masculino.
Pode-se até argumentar, ainda que sem base científica-antropológica, que o exibicionismo e a erotização de tudo, mas sobretudo da mulher, está no contorno do nosso gene. Desde que os Jesuítas resolveram vestir nossos índios e os colonizadores, sem e com batina, tomaram posse de nossas índias. O horror do escravagismo negreiro completou a obra.
A consequência dessa história também é conhecida.
Uma delas é que o Brasil é “vendido” lá fora como a terra de mulher bonita, sexy, gostosa, e promíscua. Também não são poucas as brasileiras alvo do tráfico de mulheres para exploração sexual.
Não à toa, o governo brasileiro trabalha, desde antes do Mundial, a campanha de combate ao turismo sexual, ao abuso e à exploração sexual de crianças e mulheres – aqui e aqui neste blogue.
Antes da gafe, para dizer o mínimo, do marido da Angélica, empresa produtora de material esportivo também fez das suas. Patrocinadora da nossa seleção, lançou camisa comemorativa da Copa 2014.
O cúmulo da desfaçatez é que as camisetas estampavam a sedução da mulher brasileira como principal atrativo. Um desrespeito e um convite ao turismo sexual.
O movimento de mulheres denunciou – aqui. As redes sociais reagiram negativamente. O governo brasileiro cobrou, e as camisetas saíram de cena – aqui.
A lembrar que é consensual entre organismos e movimentos de direitos humanos: grandes eventos, a exemplo da Copa do Mundo, favorecem esse tipo de abuso e transgressão. E mulheres, e crianças são as vítimas potenciais – clique para saber mais.
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É bom não esquecer, meninas e mulheres: somos uma sociedade patriarcal, machista e discriminatória. Por mais que, guerreiras desde sempre, as mulheres hoje se coloquem ombro-a-ombro com os homens.
Não se iludam: o capitalismo consegue ser mais selvagem conosco. Somos mais preparadas, mas ganhamos menos em atividades idênticas, e ocupamos menos postos de comando. Temos uma presidenta da República, mas somos constrangedora minoria em cargos políticos, em todos os níveis.
Por mais que a mulher vá à luta, tenha maior nível de estudo, seja maioria nas universidades. Por mais que a mulher represente quase a metade da força de trabalho ativa, seja provedora de boa parte das famílias. A inteligência, o trabalho e a competência ainda são punidos com a desigualdade de tratamento, o assédio moral e sexual.
Importa ser sexy, ter uma boa bunda e um bom par de pernas torneadas. Assim, lindamente comportadas, e gostosas, temos direito ao prêmio do príncipe encantado. Sorte temos quando ele não se revela um sapo, um idiota e/ou carrasco.
E a Comunicação, no seu amplo aspecto – Jornalismo, Publicidade, Propaganda e Relações Públicas, alimenta e potencializa a imagem da mercadoria, não raro da vulgarização. Cotidianamente.
Mesmo quando coloca o contraponto do “homem-objeto”. A exemplo do comercial, no ar, para vender a camisa dupla-face do São Paulo Futebol Clube, comemorativa da Copa do Mundo no Brasil.
Até quando, a exemplo da reportagem sobre o evento manauense, uma pretensa intenção de mostrar realidade diversa.
Mulheres e meninas, tidas, mantidas e louvadas como objeto de consumo, bibelôs para cama e mesa. Descartáveis.
Ou somos parideiras, donas de casa, talhadas para o fogão, a vassoura e o tanque, sem direitos ao próprio corpo.
Em quaisquer dos casos, de preferência caladinhas – para irmos para o céu*.
Melhor ser mázinha, e ir à luta*. Apesar de…
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PS: * Ute Ehrhard: Meninas Boazinhas vão para o céu. As más vão à luta, manual de cabeceira para mulheres de todas as idades, Objetiva, 1996 – 7ª edição
(Título original: Gute Mädchen Kommen in den Himmel, Böse Überall Hin, S.Fischer Verlag GmbH, Frankfurt am Main, 1994)
PS2: Outras leituras pertinentes ao tema:
- A Imagem da Mulher na Mídia – Controle Social Comparado, Rachel Moreno, Publisher, 2013
- O Complexo de Cinderela, Coulette Dowlling, Melhoramentos, best seller do começo dos anos 80 do século passado, mas ainda atual, já que trata dos condicionamentos femininos
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Potagem revista e atualizada dia 02.07.2014, às 19:51: acréscimo de mais duas sugestões de leitura.