
por Sulamita Esteliam*
Neste 10 de dezembro de 2014, o Brasil pós-redemocratização dá o segundo passo na direção de se reconciliar com sua História política recente. Está nas mãos da presidenta da República, Dilma Roussef, o Relatório Final de dois anos e sete meses de trabalho da Comissão Nacional da Verdade, instituída por ela, que comprovam a violação grave de direitos humanos durante os 21 anos de ditadura (1964-1985).
Ao ao fazê-lo, a Comissão aponta 377 responsáveis pelos crimes de lesa-humanidade traduzidos em 434 mortes e desaparecimentos de vítimas do regime militar. Faz mais, indica o terceiro e definitivo passo no reencontro do Brasil com a sua verdade: a revisão da Lei da Anistia, que mantém impunes os algozes, há 35 anos.
Faz outros alertas e recomendações. Particularmente, sobre as graves e sistemáticas violações de direitos humanos nos presídios brasileiros. Propõe, enfaticamente, a ampla reforma do sistema de segurança pública do país, sobretudo no que diz respeito à desmilitarização da PM e o fim dos famigerados autos de resistência à prisão – aqui e aqui neste blogue.
Dilma chorou a receber o relatório. Ela que criou a Comissão Nacional da Verdade, ela que sofreu na pele a violação da tortura. Dilma que sofre, agora, o achincalhe dos opositores, que tentam negar-lhe a legitimidade concedida pelas urnas. Gente oportunista e/ou mal informada, a acenar para tempos de triste memória.
Em discurso emocionado, a presidenta da República reeleita foi clara o suficiente para bom entendedor:
“Nós que amamos tanto a democracia esperamos que a ampla divulgação deste relatório permita reafirmar a prioridade que devemos dar às liberdades democráticas, assim como a absoluta aversão que devemos manifestar sempre aos autoritarismos e às ditaduras de qualquer espécie”, afirmou.
Para ela, tornar público o relatório, no Dia Internacional dos Direitos Humanos, “é um tributo a todas as mulheres e homens do mundo que lutaram pela liberdade e pela democracia e, com essa luta, ajudaram a construir marcos civilizatórios e tornaram a humanidade melhor”.
A presidenta acredita que o trabalho da Comissão contribui para o conhecimento da História pela sociedade e para construir um futuro livre de ameaças autoritárias:
“Nós que acreditamos na verdade, esperamos que este relatório contribua para que fantasmas de um passado doloroso e triste não possam mais se proteger nas sombras do silêncio e da omissão”, disse.
Dilma não tocou no assunto revisão da Lei da Anistia, recomendada pela Comissão.

Não se trata de revanche. A Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, vai de encontro as leis internacionais, quando livra os agentes do Estado de suas responsabilidades na morte e desaparecimentos dessas pessoas. É autoanistia, flagrante delito contra o direito inter-nações.
Aliás, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2010, responsabilizou o Brasil pelo desaparecimento de participantes da Guerrilha do Araguaia (1967-1974).
Na ocasião, afirmou que as disposições da lei da anistia “são manifestamente incompatíveis com a Convenção americana sobre Direitos Humanos, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação de graves violações de direitos humanos, nem para a identificação e punição dos responsáveis.”
Matéria de Carta Capital a respeito do Relatório da Comissão da Verdade destaca o trecho concernente à Anistia, e traz o retrospecto essencial para a compreensão da importância do momento.
A Comissão Nacional da Verdade colheu 1.121 depoimentos, 132 dos quais de agentes públicos, fez 80 audiências e sessões públicas país afora. Percorreu o Brasil de norte a sul, visitando 20 unidades da federação, onde realizou audiências, diligências e tomada de depoimentos. Visitou, também, unidades militares e locais utilizados pelas Forças Armadas, no passado, para a prática de tortura.
Constatou graves violações de direitos humanos: prisões sem base legal, tortura e as mortes dela decorrentes (191), violências sexuais, execuções e ocultações de cadáveres e desaparecimentos forçados (243), 33 dos quais tiveram suas ossadas localizadas e identificadas.
O último dos desaparecidos localizado, foi encontrado durante os trabalhos da CV: o camponês Epaminondas Gomes de Oliveira, que militava no Partido Comunista e morreu numa dependência do Exército em Brasília. Ali foi enterrado, longe da família.
Praticadas, como o foram, de forma massiva e sistemática contra a população, tais violações se enquadram em crime contra a humanidade. Resultado de “uma ação e sistemática do Estado Brasileiro”, e não atos isolados ou excessos ocasionais.
Como tal, são crimes imprescritíveis e não passíveis de legislação interna que as anistiem, como é o caso da legislação que vigora no Brasil desde 1979. Tudo segundo parâmetros legais internacionais.
O relatório tem três volumes. O volume I descreve, em detalhes, o trabalho da Comissão, as graves violações de direitos humanos, traz as conclusões e recomendações. O volume II reúne textos temáticos de alguns membros da CV. E o volume III é integralmente dedicado às vítimas.
O terceiro e último volume traça o perfil de cada um dos 434 mortos e desaparecidos políticos do regime militar vigente de 1964 a 1985, suas vidas e as circunstâncias que envolveram suas prisões e mortes. Clique para acessar e baixar.
A ONU parabenizou o governo brasileiro pela conclusão do relatório.
A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12.528/2011 e instalada em maio de 2012. O propósito: apurar e esclarecer, indicando as circunstâncias e autorias, das graves violações de direitos humanos praticadas de 1946 a 1988, intervalo entre as duas constituições democráticas do Brasil.
Presidida pelo advogado e professor do Instituto Ibero-Americano, Pedro Dallari, são membros da CNV: Gilson Dipp, advogado, vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça, e primeiro coordenador da Comissão; José Carlos Dias, advogado criminalistas e ex-ministro da Justiça de FHC; José Paulo Cavalcanti Filho, advogado e ex-secretário-geral do Ministério da Justiça do governo Sarney; Maria Rita Kehl, psicanalista e cronista; Paulo Sérgio Pinheiro, cientista político e professor da USP; Rosa Maria Cardoso, advogada criminalista, professora da UFF, defensora de presos políticos.
- Leia a entrevista de Pedro Dallari, presidente da Comissão Nacional da Verdade a Carta Capital.
- Conheça a lista dos 377 violadores dos direitos humanos no período 1964-1985
- Leia a Nota Pública do Levante Popular da Juventude pela Punição aos Torturadores
- Saiba ou rememore o que foi a Operação Condor que uniu Brasil, Argentina e Uruguai em articulação diplomático-repressora
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* Com o sítio da CNV, Blog do Planalto, Carta Capital, Carta Maior e Latuff Cartoons
Postagem revista e atualizada dia 11.12.2014, às 11:32, hora do Recife: substitiuição da palavra “contra” pela expressão “traduzidos em”; e da expressão “crimes de lesa-humanidade”, repetida na última linha, por “os algozes” – tudo no segundo parágrafo.

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