
por Sulamita Esteliam
Minha tia Mundica, se estivesse neste plano, completaria 100 anos neste 12 de fevereiro de 2016.
Fiz uma prece para ela, logo cedo. Mas só há pouco atinei para a redondeza do tempo.
Navegava pela blogosfera à escolha de um assunto para fechar a semana de trabalho, que já foi curta e enviesada. Estava mesmo tentada a publicar um poema ou transcrever um bom artigo ou crônica de outrem.
É que o dia hoje (sexta) foi pesado – lavei, cozinhei, limpei, costurei, fiz compras… Estou deveras cansada.
Acordei quando o dia amanheceu, lá pelas cinco. A cama estava uma delícia e para ela voltei, ainda em jejum, depois de atender a necessidades matinais inadiáveis. Deixei que o maridão fizesse o café.
Confesso: esperei que ele me livrasse do desgaste de ter que brigar com a caçula logo cedo, já que deixara a pia carregada de louças, que ela e o namorado usaram, na noite anterior. E, nas circunstâncias, eu me recuso a lavar. Foi exatamente o que aconteceu: o pai livrou a cara da filha, pra variar.
Só às nove fiz o desjejum. Carreguei a lavadora de roupas e fui pra minha caminhada, banho de mar e alongamento, sem pressa. A dona Maria reclama, mas minha saúde e meu prazer valem mais que os ponteiros do relógio. Dane-se a paúra da dona de casa.
No retorno, passei pelo supermercado para garantir os ingredientes que faltavam para fazer pão de queijo. Minha neta, Larissa, certamente espera receber a guloseima no domingo. Vou para Fortaleza abraçá-la ao vivo e em cores nos seus 18 anos; faz aniversário na terça, 16.
De quebra, mato um pouco a saudade da minha amiga-irmã cearense, Ana Karla Dubiela, que faz tempo não dá as caras no Recife.
Larissa é minha única neta, e só consigo vê-la uma vez por ano – lá, aqui ou acolá, quando coincide estarmos em Belo Horizonte. E sempre tipo rapidinho.
Após o almoço – que cada qual se virou com o que tinha na geladeira, viva o microondas! – enquanto o polvilho escaldado esfriava, recarreguei a máquina de lavar uma, duas vezes, e liguei a máquina de costura para alguns reparos inadiáveis; inventei moda. Já era noite quando, finalmente, amassei o pão de queijo. É assim que a banda toca…
A massa descansa na geladeira; é indispensável antes de enrolar e congelar. Aproveito o tempo para o blogue.
Só aí a conexão: tia Mundica completaria um século neste 12 de fevereiro.

Nasceu Raimunda Gonçalves Ramos, nas Lages, distrito de Inhaúma, nas cercanias do grande tabuleiro roseano, que tem Sete Lagoas como epicentro.
Era a primogênita dos três rebentos que minha avó Licínia Pinto Pereira e meu avô Emydio Gonçalves Ramos lograram pôr no mundo. A outra era a tia Zélia, que se foi aos 33 anos, de tuberculose. Meu pai,Guilherme, era o caçula, e partiu aos 28 anos, despachado com dois tiros por um sujeito que não segurou os cornos. Crime passional, que antigamente era louvado como “em defesa da honra”.
Mundica tinha 16 anos mais que meu pai. Estava nos 81 anos quando se encantou, a 02 de dezembro de 1997. Note que, traduzindo-se em números, a passagem da vida se deu em data inversa ao nascimento.
A gente havia se mudado para o Recife há coisa de cinco meses. Não deu tempo de ela vir nos visitar, e creio que não viria de qualquer forma. Esteve conosco em Brasília, aonde era factível chegar de ônibus. Pulou Fortaleza, porque tinha medo de avião. Não aguentaria 36 horas de estrada para chegar ao Recife.
A morte é sorrateira, e colheu-a de madrugada, numa situação que certamente ela consideraria vexatória. Foi, digamos, o primeiro passo. O desfecho viria dezesseis ou dezessete dias depois.
Sofreu um AVC, e o socorro só veio pela manhã. Morava sozinha num barracão ao lado da casinha onde minha mãe residia. Acostumada a madrugar anos a fio, primeiro na roça, e depois enquanto teve de batalhar o ofício de tecelã, com a aposentadoria e a idade se permitia ficar um pouco mais na cama. Mas nunca se levantava após as oito.
Naquele dia, minha mãe estranhou a quietude da vizinha, e parceira de toda uma vida. Bateu na porta, várias vezes, não houve resposta. Não sei se tinha uma cópia da chave para abrir a porta, ou se teve que arrombá-la, pois além da fechadura, tia usava trinco nas duas portas de acesso ao barracão. Não me lembro do relato dos destalhes.
Mamãe a encontrou caída no chão. Havia aspirado excrementos.
Minha irmã caçula, Zeíca, ainda solteira, já estava no trabalho. Meu irmão, Alarcone, habitava o terceiro barracão no mesmo terreno, mas também já estava no serviço, creio. Minha cunhada, despachada, chamou a ambulância e acompanhou minha tia ao hospital, no Barreiro, um unidade municipal.
Minha irmã, Elizethe, foi quem me avisou, antes de seguir para o hospital.
Os primeiros socorros se deram, mal e porcamente, no corredor; não havia leito. Minha cunhada usou o telefone público – celular era luxo para poucos – e ligou a cobrar para minha casa no Recife. Estava indignada, e apavorada com a possibilidade de a tia morrer “feito indigente”. Em seu jeito desenfreado, me provocou: “Você é jornalista, tem que dar um jeito…”

Sou avessa a carteirada. Também não gosto de pedir favores, lograr privilégios.
Desta feita, fechei os olhos e fiz o que me cabia: liguei para o gabinete do prefeito de Belo Horizonte, à época o médico Célio de Castro. “Ti-Célio” era como eu o chamava, por conta da amizade com a sobrinha dele, a também jornalista Virgínia de Castro, ex-colega de trabalho e amiga para sempre.
Quem me atendeu foi Manoelzinho, Manoel Marques Guimarães, o secretário de Imprensa, que havia sido presidente do Sindicato dos Jornalistas de Minas. Contei para ele o drama. Ele me pediu um tempo para falar com o prefeito, que estava em entrevista. Pegou meu telefone para retornar, e o fez em quinze minutos. O prefeito encarregou-o de resolver o problema, e resolvido foi.
Minha tia teve a chance do socorro devido. As providências possibilitaram que ela fosse encaminhada, três dias depois, para uma cirurgia que drenou o sangramento no cérebro em outro hospital. Consegui chegar a tempo para ir ter com ela no hospital do Barreiro, e acompanhá-la na transferência para o João XXIII.
Sou eternamente grata ao “ti-Célio”, onde estiver, e ao Manoelzinho pelo gesto de humanidade. Sou grata também à Rosely, faz tempo minha ex-cunhada – mas é mãe de um casal de sobrinhos. Atitude a gente nunca esquece.
Minha querida tia paterna, a única que pude conhecer – Zélia virou estrela quando eu tinha três meses -, e que de fato fez parte ativa de toda a minha vida, mesmo antes de eu me entender por gente. Minha mãe não escondia os ciúmes da nossa relação, mas costumava dizer que Euzinha era a filha que minha tia jamais concebeu.
Verdade seja dita, ela tinha uma chamego especial por mim – para além do fato de eu ser a primeira sobrinha. Embora fosse madrinha do meu irmão, e sempre tenha estado presente, carinhosa a seu modo, e de maneira especial, com cada uma de minhas irmãs e com nosso irmão. E também com primas e primos, e as crias desses que alcançou.
Mas era minha a primeira manga ou goiaba a ficar “de vez” no verdadeiro pomar que era o nosso quintal na infância e adolescência. E assim continuou sendo quando me casei e saí do nicho familiar. Quando eu chegava no fim de semana, me chamava num canto e dizia, acenando com o indicador erguido: “Vamo lá em casa que eu tenho uma coisinha procê…”


E assim foi com minha prole, e com a prole da minha irmã e das minhas primas, enquanto ela viveu.
O acidente vascular cerebral que acabou sendo o seu passaporte desta para a melhor, a gente conta com isso, deu-se a poucos dias do casamento da minha irmã caçula, marcado para 28 de novembro daquele ano. Tia Mundica estava na UTI do João XXIII.
No dia 30, ela foi movida para uma ala de cuidados especiais intermediária. Ia visitá-la todos os dias. No dia primeiro de dezembro, conversava mentalmente com ela, quando ouvi um gemido terrível, vindo das entranhas, quase um rugido. O leito chegou a sacudir, os aparelhos dispararam, e eu quase entro em pânico. Chamei, e a enfermagem acudiu, mas logo tudo voltou ao normal.
Saí do hospital com o coração na boca. Sabia que era a despedida.
Na manhã seguinte, eu, Júlio e as crianças – as duas mais novas – estávamos de saída para consulta marcada com o oftalmologista, que atendia toda a família. O telefone tocou e eu atendi; era do hospital.
O tempo e a sua matéria.
Mundica, em sua simplicidade quase tosca, foi uma mulher à frente do seu tempo. Gostava de festa, e se divertia em nos contar que o pai era brabo e ignorante, não a deixava ir aos bailes. Ela pedia, insistia, ele negava; sem remédio, aceitava.
Então, desejava boa noite: “Bença, pai; bença mãe, dorme com Deus”.
Ia pro quarto, trocava de roupa, apagava a lamparina e se deitava. Esperava o pai dormir (aposto que minha avó estava ligada, mas fingia-se de morta!), saltava da cama, ajeitava a coberta à guiza de corpo, cobria com a colcha, catava a bolsa, pronta desde sempre, abria a janela e pulava rumo à liberdade. Algumas vezes levava a irmã consigo.
Mundica era pé de valsa e namoradeira. Só noivo teve seis. O sétimo não chegou a noivar, partiu logo para os finalmente. O moço era 21 anos mais novo do que ela. Quando descobriu que era casado, não havia meia volta possível. Estava enredada até a medula.
Namoraram 11 anos. Até que os filhos dele cresceram o bastante para ela achar que não valia mais a pena. Disse adeus sem olhar para traz. Mas seguiu triste anos a fio.
Guardava as fotos dele, e de todos os outros, dedicadas numa caixinha que acabou em meus alfarrábios. Como de resto quase tudo do pouco que acumulou. Lembro-me, e me envergonho, que quando eu flertava, e pedia, peças da sua cristaleira, ela dizia: “Calma, quando eu morrer, será tudo seu, mesmo …”
Mamãe me encarregou de abrir o barraco, separar e dar destino às coisas da tia Mundica. Não foi trabalho fácil. Lidar com as emoções, com o cheiro e o gosto dos antepassados é nascer e morrer várias vezes.
Apontam-me, os meus, como guardiã do museu da família. Carrego, é verdade, relíquias de meus avós, de meu s pais, tios e tias. Quem sai aos seus não degenera.
Quando me casei pela primeira vez, e cada uma de minhas irmãs se casaram, tia Mundica nos legou peças e peças do enxoval da irmã que morrera poucos meses antes do casamento, em março de 1954. Perfeitas e intactas, e em bom estado de uso, ainda hoje, as que trago comigo.
Mas as prateleiras de vidro da cristaleira da minha tia estavam arriadas, tamanho peso, e também pela ação dos cupins nos pé de madeira do móvel, que acabaram por ruir. Curioso é que um anos antes, quando estive por lá, tudo estava em seu lugar.
Algumas peças quebraram sobre outras. Dentro de uma jarra para água, trincada, encontrei suas jóias, embrulhadas em papel de pão: brincos e anéis, e pingentes de coco e ouro, de rubi, um solitário… relógio com pulseira sanfonada de ouro.
Quando mostrei à senhora minha mãe, dona Dirce, ela observou: “Guardou lá para você. Ela não dizia que quando morresse tudo que estava na cristaleira seria seu? Então…”
Dividi com minhas irmãs as jóias, e posteriormente também com minhas filhas. Comigo, resta o anel de rubi e o relógio, cuja pulseira arrebentou e não consegui reparo. Claro, louças, cristais e vidros estão na minha cristaleira, desde então.
Comigo está seu caderno de receitas, anotado em letra desenhada, nos mínimos detalhes.
Herdei dela, também, o gosto pela variedade na cozinha. Muita coisa aprendi vendo tia fazer, bisbilhotando e colhendo dicas: arroz doce, panqueca, canjica, pão de minuto, bolo da vovó, pastel, salada de feijão, biscoito de polvilho, mingau de milho verde (curau), parece mas não é (broinha de fubá escaldado), pudim de queijo…
Impossível esquecer minha boa e velha tia, que sobrevive entre nós em cada detalhe das nossas vidas.
Quanta saudade eu sinto de você, tia Mundica. Chega a doer.
Muita luz, onde estiver.