por Sulamita Esteliam
O artigo abaixo me foi enviado especialmente para publicação neste A Tal Mineira, o que muito me honra, obrigada.
Elo Cunha é um rapaz de grandes e múltiplos talentos, que no meu coração habita a categoria de sobrinho afetivo, pois filho de um casal amigo e sobrinho do meu companheiro, Júlio.
Talento e gosto pela polêmica, aliás, é um traço familiar bem-desenhado e cultivado. Mas isso é outra história.
O que ele nos trás é uma reflexão filosófica importante sobre a intolerância como exercício da estupidez, que vigora. Algo que se traduz com perfeição no título do artigo: “Demasiadamente humano”.
Do ponto de vista político, Euzinha discordo que a polarização seja algo nocivo: diferenças existem para serem explicitadas. Até porque, em si, ela, diferença, é fruto da luta de classes que se tenta negar, da demonização que um lado, o dominante, tenta impor sobre o outro que quer submeter.
Não obstante, concordo, plenamente, que polaridade e diferenças não precisam se traduzir em ausência de diálogo, muito menos em bestialidade.
Ao texto:
Demasiadamente humano
por Elo Cunha* – especialmente para o A Tal Mineira
Vivemos num mundo de estereótipos ou talvez, ainda pior, numa sociedade de arquétipos (Arquétipo, do grego ἀρχή – arché: “ponta”, “posição superior”, “princípio”, e τύπος – tipós: “impressão”, “marca”, “tipo” – é um conceito que representa o primeiro modelo de algo, protótipo, ou antigas impressões sobre algo).
Reforçamos tanto e de modo tão agressivo a imagem do antagonista, do opositor, como se para ter a convicção plena de um pensamento nos fosse necessário projetar o seu oposto. Na dicotomia atual, uma verdade só pode existir se, para tal, outra for negada. É um pensamento tão antigo quanto o próprio homem. Fonte de toda a intolerância humana.
Não são mais conflitos territorialistas ou religiosos; não se trata mais da rivalização entre judeus e árabes, cristãos e pagãos, brancos e negros, conquistadores e conquistados, Deus e o Diabo, Caim e Abel, o pecado e a salvação. Esses conflitos ainda perduram de modo evidente, mundialmente, cada qual em seu microuniverso.
Certa vez, em um seminário sobre a ditadura militar no Brasil, um ouvinte me fez uma pergunta salutar: como, durante a vigência do regime, os mesmos homens que no interior dos porões torturavam pessoas conseguiam retornar para suas casas ao anoitecer e manter vidas normais, amar suas esposas, criar seus filhos, sem nenhum sentimento de culpa pelas crueldades cometidas?
Eis a origem da questão: esses indivíduos faziam isso porque, de modo convicto, foram levados a acreditar que os torturados não eram seus semelhantes, que eram terroristas, comunistas, conspiradores e, de certo modo, a ideia de contribuir para a eliminação dessa parcela degenerada da população até gerava um senso de orgulho, de dever cumprido para com a pátria.
Foi assim na Grécia, era assim em Roma, na Santa Inquisição, no Holocausto, na guerra do Vietnã. Chama-se desumanização. Um remodelar do paradigma ético e moral que permite a um ser humano olhar para o outro e simplesmente não reconhecê-lo como igual. Dai a ausência da culpa pelos atos que, de modo hediondo, simplesmente se permite realizar sem agregar nenhuma culpa. Afinal, o indivíduo não praticou desrespeito, violência, agressão ou injúrias contra nenhum dos seus semelhantes, porque, em algum momento, o outro deixou de ser seu igual.
Mas esse não é o encerrar da história. Essa nova convicção passa a ser ensinada, mascarada de moral e bons costumes, para as gerações vindouras, ao ponto de sua fonte cair no esquecimento e se tornar apenas a verdade. Justificar-se-á adiante, que tais atos são praticados porque sempre foi assim, pois o pai do meu pai repassou o pensamento desumanizador adiante, e a repulsa ao diferente torna-se social e moralmente aceita. O indivíduo, fruto de sua criação e convívio familiar, carrega, na construção de sua própria identidade, o ódio e a intolerância ao outro, a quem nem sequer se permite conhecer.
Nascemos páginas em branco e em nós, sem que tenhamos ainda consciência do fato, são semeados rancores e convicções tão antigas que, ao nos apegarmos a elas, construímos o conceito prévio sobre um outro ser humano, sim, um preconceito. Aprende-se a considerar o ensinamento recebido como Verdade ou, ainda pior, como paradigma sobre o qual não se pode cogitar o questionamento: o alicerce familiar.
Assim, no transpor da adolescência temos jovens brancos odiando negros, heterossexuais verbalizando desprezo e homofobia, cristãos agressivamente desrespeitando religiões de matrizes africanas, o civilizado desejando a aculturação do indígena, e muitas e muitas atitudes que, certamente, não passaram sequer pela mínima reflexão pessoal. Atiramos no outro as pedras que, desconhecendo a razão, nos foram entregues na ancestralidade do repasse de nossas criações e convívios.
No presente momento, um novo antagonismo toma forma em nosso meio. Sempre que nos confrontamos com a fome, a doença, a morte ou a escassez de recursos, nosso germe da intolerância renasce em busca do culpado, aquele que será desumanizado para que possa ser tido como causa ou razão da existência do que aflige a sociedade como um todo. Esse é o modo operante de uma sociedade em crise: defender aos seus, aos que irracionalmente considera como semelhantes, e atacar aqueles que passam a ser vistos como rivais. Indignos de sequer merecerem o benefício do diálogo. E do outro lado não poderia ser diferente, o proceder é idêntico.
Vivenciamos a guerra santa, a guerra da santa burrice (com perdão ao asno pela referência). Num planeta assolado por uma pandemia, o cidadão, que se autodeclara de bem, alista-se como Bolsominion ou Petralha. Vertentes da mesma moeda, cujo antagonismo só convém para aqueles que fomentam a discórdia, como cortina de fumaça para a dilapidação do bem comum, pertencente aos dois lados, assim como aos poucos que ainda não se viram forçados ou atraídos para uma das vertentes do ciclo nefasto da intolerância.
É hora de romper com a polarização infecunda, baseada na critica à convicção alheia e não na reflexão individual. A sombra de toda segmentação social já ocorrida nos conflitos humanos paira sobre nós. Uma hora, para dissimuladamente forjar a integração social, um inimigo será eleito e sobre ele recairá toda a culpa, construída do medo, da pretensa necessidade de unificação, do falso sentimento patriótico e do desejo de legitimação dos focos de poder. O momento é de cautela porque, no fim de tudo, dentre a fantasiosa disputa entre pretensas direita e esquerda, sem que lhe seja previamente informado, o mártir, meu amigo, pode ser você.
*Elo Cunha é formado em letras pela UFMG. Médico, pela UFPI, atua no enfrentamento do COVID no Estado do Maranhão.