por Sulamita Esteliam
Hoje contei dez famílias morando sob a marquise da antiga sorveteria no caminho da praia – mulheres, homens e crianças. Há gente idosa também, e um vira-latas para dividir a fome.
A loja está fechada desde muito antes da pandemia. É uma das milhares de vítimas da derrocada dos fundamentos da fictícia ponte para o futuro, instalada com o golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff e multiplicada com o desgoverno do faz de conta.
Há cada vez mais gente sem ter onde morar e o que comer. Quem sobrevive à pandemia pode não escapar da fome, no Brasil e no mundo. E a miséria dói na gente, imagina em quem a carrega como segunda pele.
Vi a partir do Twitter, compartilhado pelo fotógrafo Flávio Costa: o El País Brasil traz reportagem sobre o aumento de pessoas que procuram o serviço médico queixando-se de algum mal. “Não é doença, é fome”, diz um profissional de saúde entrevistado no Distrito Federal, o terceiro maior PIB do Brasil.
Entro em desespero quando vejo alguém estender uma mão, enquanto a outra esfrega o estômago, dolorosamente. Gestos acompanhados de um esgar na boca, e um revirar de olhos que corta feito punhal.
Vem-me à mente a imagem do “X”, que anda sumido, com o abre-fecha da praia. É um rapaz conhecido na orla, que carrega o apelido por conta das sequelas da paralisia infantil.
Sozinho, vive de pequenos expedientes para os barraqueiros, encosta o corpo onde e quando alguém lhe dá guarida. A rua é sua morada desde os 12 anos, quando fugiu dos cafundós de Garanhuns para livrar-se das maldades do padrasto.
Costuma me enxergar de longe, e vem com a palma da mão erguida para eu bater, no gesto característicos dos “brothers”. Seus olhos enormes falam, e quando não chega com o sorriso aberto é porque está faminto.
Já fui criança e adolescente pobre. Minha mãe, viúva, cortava um doze para alimentar a prole de quatro. Passávamos carências, vontades. Carne todos os dias era luxo de que não dispúnhamos. Jamais conhecemos a fome.
Sobravam frutas, havia horta e galinhas poedeiras no quintal. E minha mãe aproveitava até a água do macarrão escorrido, à guisa de leite, para fazer bolo.
Vem-me à memória Carolina de Jesus e seu Quarto de Despejo:
“… O que eu aviso aos pretendentes a política, é que o povo não tolera a fome. É preciso conhecer a fome para descrevê-la.” (SIC)
Ninguém pode naturalizar essa dor. E tem que ser muito insensível, ou negacionista, para fazer de conta que não vê, que não existe e por quê acontece.
De novo, Carolina, em 1958:
“… O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.
“Quem passa fome aprende a pensar no proximo. E nas crianças.” (SIC)
Um quarteirão abaixo, na Pracinha de Boa Viagem, há um barraqueiro que, de tempos para cá, abre todos os dias pela manhã. Ao contrário da maioria que acompanha o horário tradicional de funcionamento da feirinha, no fim da tarde.
O detalhe é que ele insiste em manter hasteada a bandeira do Brasil, na fachada e no teto da pequena barraca. Mas a frequesia não chega.
Seus vizinhos, um pouco adiante, e ao lado, aproveitam o sol para estender na grama a roupa que certamente cheira a bolor dos dias seguidos de chuva. O gramado fica colorido. É o grito carnavalizado da miséria.
Acontece com as criaturas que têm um teto sobre a cabeça, imagina com quem dorme ao relento, e embola suas poucas peças num mochila ou “bolsa” – nome que aqui se dá às sacolas plásticas de compras e àquelas próprias de viagem.
Outros, que usam a própria roupa do corpo como lençol, se reúnem nas bancadas do calçadão para jogar conversa fora com semelhantes que ali fazem ponto, como todos os dias.
Riem, porque melhor rir do que chorar. Conseguem fazer piada da própria desgraça. Falam de futebol, tiram onda com a cara do outro, e não esperam bater 10 horas para tomar a primeira lapada de cana.
Também sem a cachaça, quem segura esse rojão…, né não, Chico Buarque?
Todos vigiados por uma viatura da PM, que agora dá plantão frequente na esquina da praça. Auxílio luxuoso à dupla costumeira de Cosme e Damião, como se diz na minha Macondo de origem.
Sentinelas do calçadão. Onde falta pão, aumenta-se a segurança. Afinal, a terra é turística e há hotéis por toda parte.
Dia desses, voltava da caminhada e, enquanto esperava o sinal abrir, assisti a uma cena curiosa: um pedido de socorro de uma mulher, ainda jovem, do outro lado da praça, habitat cada vez mais disputado pelos sem-nada. Dirigia-se a um determinado homem, dentre os vários da arquibancada às minhas costas:
-Ei, Paulista, me ajuda aqui!
Ela carregava um balde e uma sacola de viagem, que arrastava a duas mãos com uma garotinha de seus, talvez 8 anos. O “Paulista”, solícito, respondeu: “Agora!”
O sinal fechou para os carros e ele cruzou a rua, cocheando, apoiado em uma muleta de metal, que lhe dava sustentação à perna direita, enquanto balbuciava algo como, “tenho muita pena, preciso ajudar…”
Logo, o “Paulista” estava a carregar a bolsa, enquanto a mulher levava o balde. Numa e noutro, roupas molhadas que ela havia lavado sabe-se lá onde. Não satisfeito, passou a ajudar a sacudir e estender as peças, cuidadosamente, com a muleta escorando o corpo pelo cotovelo.
A solidariedade é um traço do povo, em qualquer canto deste país.
Na amurada da rua transversal, que é parte do meu caminho, um senhor negro, com a camisa do Sport, me cumprimenta com o sorriso triste e desdentado. Devolvo o sorriso e aceno com a mão.
Penso que nem a sorte no futebol está do lado do pobre do homem: o Náutico foi campeão em cima do time dele, nos pênaultis.
Tornei-me “parça” do senhor, desde a carreata em apoio ao capiroto-genocida, no 1º de Maio. Descíamos para a praia, Euzinha e o maridão, e ele, sentado no mesmo lugar, gesticulava e dizia:
-Lula vem aí, e você vai para os quinto dos infernos, de onde nunca deveria ter saído, demônio! Eu sou Lula, vou morrer Lula!
Sorria, esbravejava e gesticulava na direção dos manifestantes, e olhava para mim e o maridão, identificados, cada qual, com a indefectível máscara vermelha. Sorrimos em concordância, e fizemos o L para ele, que aproveitou para nos dizer que era seu aniversário.
Pediu uma cerveja. Ficamos devendo. Não andamos com dinheiro e, para azar do aniversariante, naquele dia, o cartão tinha ficado em casa.
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Na quinta baixou a canseira da semana. Na sexta, o provedor bugou e assim permanece. Hoje foi um parto escrever e postar. E olha que Mercúrio só fica retrógado dia 29 de maio, e até 22 de junho. Só Jesus na causa!