“Que é mesmo a minha neutralidade senão a maneira cômoda, talvez, mas hipócrita, de esconder minha opção ou meu medo de acusar a injustiça? Lavar as mãos em fase da opressão é reforçar o poder do opressor, é optar por ele.”
Paulo Freire, educador e filósofo pernambucano
por Sulamita Esteliam
Minha primeira professora foi Maria Batatinha. Não chegava a metro e vinte de altura, o que para meus 5 anos era uma glória; tínhamos quase o mesmo tamanho. Ensinou-me a fazer sopa de macarrão com batatas na borra da carne frita. Ficou um grude, que minha avó transformou em deliciosos bolinhos.
Creio que vem dessa estreia malfadada, que resultou em delícia, meu amor pela cozinha de aproveitamento.
Tivemos que usar um banquinho para alcançar a trempe do fogão à lenha de Mãe Ceição, minha avó materna. E claro, contarmos com a dedicação do nosso Anjo da Guarda para não nos estatelarmos no chão, ou assarmos no fogo, ou nos pelarmos no caldo quente da sopa, enquanto caldo houve. O jogo de cintura de vovó, habitualmente uma onça, fez o resto.
Havíamos acabado de perder meu pai, de modo trágico, e a família nos rebocara para o interior. Uma forma de garantir suporte, e vigilância, à jovem viúva e sua prole. Minha mãe tinha 26 anos, quatro rebentos e nenhum dinheiro. Euzinha, a primogênita. Penso que um Bolsa Família naquelas circunstâncias teria sido de grande ajuda, com todo mérito e capacidade familiar.
Maria Batatinha vivia no asilo que ficava ao lado da casa de meus avós, e me “ajudava” a cuidar do meu irmão e de minhas irmãs. Enquanto minha mãe buscava trabalho e minha avó ajudava a botar outras crianças no mundo cidade afora, a gente se divertia. Tinha um papo formidável no pescoço, que eu gostava de apalpar. Era alegre e serelepe feito um pardal, e não tinha lá muito juízo.
Aos 6 anos fui para a escola. Depois de estrelar uma birra em frente à diretora, que havia sido professora da minha mãe, entrei como “ouvinte”. Não possuía idade suficiente para ser matriculada na primeira série, naquele tempo. Fui parar na classe de uma certa Beoquiz, que tinha o nariz muito empinado para meu gosto. Ela pensava o mesmo sobre mim. No caso, talvez a palavra fosse “petulante”.
Todavia, foi ela quem, no meio do ano, procurou dona Lourdes, dublê de diretora e professora, e recomendou minha transferência para uma turma de crianças mais velhas e “mais adiantadas”. E foi assim que nos livramos uma da outra, e me tornei aluna oficial, da própria dona Lourdes. Nos demos muito bem.
Por essa época, eu tinha o firme propósito de vir a ser professora, o que fazia meu tio Zezé, o caçula com ares de político (de fato era vereador pelo PTB), rir de um canto a outro da boca. Mudei de ideia, rapidamente.
Minha mãe, Dirce, me ensinou a cantar, a recitar e a ler em voz alta, e achei que poderia ser cantora, quiçá atriz. Dona Maura me ensinou a dançar, e sonhei em ser bailarina. Acabei me tornando jornalista. Sai do espeto para cair na brasa.
Ficamos pouco tempo em Caetanópolis, mas a memória desses tempos guardei para sempre.
E depois, já em Belo Horizonte, vieram tantas outras mestras e tantos outros mestres tempo afora… Com a maioria aprendi que a gente aprende o resto da vida. Com parte ínfima, aprendi como não desaprender.
Somos amálgama, colcha de retalhos, pera, uva e maçã, salada mista. Paulo Freire escreveu que “ninguém educa ninguém, mas também ninguém se educa sozinho”.
Há quem se esqueça: mestres e mestras são feitos da mesma matéria, são gente como a gente. Assim como nosso pai, nossa mãe. Escultores que escolhem trabalhar diferentes pedras ou madeiras ou metais, com as mãos e/ou com o intelecto. É gente com alma e cabeça, com defeitos e qualidades, com desejos e necessidades, com espírito de doação ou espírito de porco… com mais ou menos talento para lidar com as diferenças, com as singularidades das gentes em eterna formação.
Mariinha, que Deus a tenha, era um pitbull em forma de professora, em metro e meio de altura e milhares de sardas por todo o corpo. Quando em ataque de fúria, costumava arremessar capetinhas de encontro ao quadro negro, que na verdade era verde. Os mais afortunados ficavam de nariz no canto da parede…
Tive a sorte de cruzar com ela tão somente de passagem, logo no meu retorno a Beagá. Tempos depois, nossas vidas se cruzaram por outros motivos. A pobre viveu e morreu atormentada. Tomara tenha encontrado paz e sossego.
Léa, voz doce e nenhum pudor em usar a palmatória, num tempo em que o castigo físico ainda era lei nas escolas, também não deixou saudades. Mas, graças a ela, aprendi a tabuada de multiplicação do 7, meu número da sorte… para sempre.
Daúrea era linda, solar e acolhedora. No casamento dela, lotamos a igreja de São Paulo da Cruz, na Gameleira, e lhe demos um banho de arroz à saída; trinta filhotes em grande alarido. Acredito que não tenha se esquecido desse acontecimento, também. Ganhei dela meu primeiro Monteiro Lobato: Viagem ao Céu. Fez-me leitora para sempre.
A mágica do aprendizado na primeira infância teve boas consequências na fase seguinte, no tempo em que ao Primário seguia-se o Ginásio. A gente se depara com a novidade da multiplicação de mestres e mestras. Há quem permaneça para sempre em nossas mentes. Há quem não passe de sombra.
Boas ou más, mas sempre divertidas lembranças.
No João XXIII, Mírian lecionava História e nos levava aos piqueniques no alto do Cristo Redentor, no Barreiro. Às vezes fazia dupla ao violão com Edmundo, o professor de Inglês e Geografia, que era apaixonado por ela, e tocava e cantava muito bem, o que fazia meninas românticas suspirarem acordadas e babarem na fronha quando o visitavam em sonhos.
Lá bem distante, por trás do sol/lá tão distante,onde o pôr do sol/põe tons vermelhos na noite, como um véu/onde aos meus olhos, a terra encontra o céu/vivia outrora, com meu bem, em Greenfield…
E havia Ademir, que ensinava português, e era bravo feito um corisco, e em estado de ira ficava vermelho como um pimentão, mas acabou conquistando e casando com a filha do dono do colégio…
No Domiciano Vieira, Sílvio também lecionava História, e clareou nossas cabeças sobre o significado da tal “revolução”. O duplo golpe de Estado que, a partir de 1964, fechou o Congresso, suprimiu as eleições, censurava a imprensa, reprimia os sindicatos, as escolas, o pensamento divergente, prendia e torturava e desaparecia com seus opositores. Até que um dia, desapareceram com ele. O que terá sido feito de Sílvio?
O arbítrio durou 21 anos, fez centenas de mortos e desaparecidos, gestou mais de uma geração abúlicas, que pariu outras que agora é parte da gente que tenta pisar na democracia para ressuscitar a múmia… Alguns dos algozes se perderam para sempre no oco do trans-mundo. Outros sobrevivem a purgar suas memórias. Que o inferno lhes seja leve.
E havia Análpia, um furacão em forma de mulher, que transformava o estudo da Literatura em festa do prazer, e nos levou a descobrir o teatro. E Humberto, professor de inglês, com sorriso permanente nos olhos, e que nos estimulava a cada acerto e não nos deixava prosseguir no erro: “Repeat of me… Good, good for you…!”
No segundo grau, atual ensino médio, as urgências adolescentes nos deixa alguns de nós um tanto confusos. É o período de que menos me lembro de professores. De todos, ficou o Betão, fera da Biologia. Conseguiu a proeza de me fazer gostar da matéria e transformou-me, modestamente, em uma de suas melhores alunas.
Talvez porque tenha ido e vindo de diferentes cursos e colégios, tenha experimentado a frustração das notas baixas, a segunda época, a bomba… em química, no curso de Química, por 0,26 décimos. O nome do carrasco saiu de tela. Trabalhava de dia, estudava à noite. Adoeci gravemente. Mudei de curso, de escola. Namorei, noivei e casei, e engravidei antes do vestibular.
Na universidade você desperta para o mundo além do próprio umbigo. Ou não…
Sou uma pessoa de sorte, sou faficheira. Estudei com os melhores do meu tempo, na Fafich/UFMG. Moacir Laterza, filósofo e mago da semiótica, estrela desde 2004, é grata lembrança. Com ele estudei Estética e História da Arte. Também no básico, experimentei a excelência: Regina, depois Otávio Dulci, na política; João Antônio, na Economia; Paulinho Saturnino, na Sociologia.
Rendo minhas homenagens à trupe que ajudou a alicerçar meu edifício em permanente construção. E em nome desta, abraço mestras e mestres de ontem, de hoje e do amanhã.
Que a Pátria Educadora inclua vocês no lugar que lhes é devido.
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Postagem revista e atualizada dia 16.010.2015, às 22:37: correção ortográfica na frase de abertura.