
‘afronta’ o machismo e a misoginia – Foto: Lula Marques/Ag.PT
por Sulamita Esteliam
Que o golpe é fruto do machismo misógino – além de racista, homofóbico e classista – a gente sabe e não se cansa de repetir.
Até que cesse e se retome a democracia, que se traduz, indubitavelmente, em Dilma Rousseff reconduzida ao posto para a qual foi eleita por 54 milhões de votos.
Tudo o mais, inclusive a conversa de “ausência de fato político a sustentar a derrubada do impeachment”, é parte do jogo de interesses cruzados. A mídia que o diga.
Enquanto não acontece a retomada plena da democracia, a gente tem que continuar exigindo o respeito às regras democráticas nas ruas.
Não podemos e não temos que aceitar nem nos acostumar ao ritmo predatório e vexatório do desgoverno usurpador. Que inclui, definitivamente, riscar o pudor da vida nacional.
O Brasil que trafega na ponte para o abismo e, a cada dia e cada vez mais, nos envergonha diante do mundo.

E o Zé Bolinha de Papel Serra-abaixo tinha que nos fazer passar por mais esse vexame internacional. Em visita oficial ao México, saiu-se com essa diante da chanceler Cláudia Ruiz Massieu:
“Devo dizer, cara ministra, que o México, para os políticos homens no Brasil, é um perigo porque descobri que aqui quase a metade dos senadores são mulheres.”
Não contente, repetiu o que deve considerar uma “piada” ao convidar a colega de cargo para as Olimpíadas no Rio:
“Quero muito que você vá [aos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro], mas será um perigo porque chamará a atenção para este assunto.”
Fico imaginando se não tem alguém que possa querer bem a este senhor para dizer-lhe que ele não tem o menor talento para a diplomacia, quiçá para o humor.
Podíamos passar sem o constrangimento, mas o avançado da minha idade não enxerga além de cinismo.
Não basta lembrar que o Brasil tem menos de 20% de mulheres no Senado e nenhuma mulher no primeiro escalão do desgoverno do qual o Zé Bolinha faz parte.
Não se pode esquecer, jamais, que é um governo provisório e ilegítimo, porque fruto da traição, a qual o chanceler ilegítimo ajudou a urdir.
Um golpe político que afastou e visa derrubar a única mulher que ousou chegar à Presidência da República neste País. Pior, foi reeleita, apesar de tudo que se tramou para impedi-la.
Não me esqueço da confissão-promessa que Roberto Civitta, o falecido dono do ex-império Abril – cujo desaparecimento o colega Luis Nassif apregoou, recentemente – fez a um interlocutor, pasmem, do PT.
Teria dito o porta-voz da casa-grande, recorrendo a famoso dito udenista:
“O Lula a gente tentou derrubar, não conseguiu. Mas a Dilma, vamos trabalhar para que não se eleja. Se for eleita, para que não governe, e se governar, vamos apeá-la da Presidência.”
Ocorre-me artigo suculento e profundo da filósofa e escritora Marcia Tiburi, publicado na Revista Cult.Com esta semana. Ela analisa o machismo, exatamente, “como um jogo de linguagem” que auxilia na avaliação do papel “central da misoginia em suas operações”.
“Misoginia, o que significa?” Alguém, distraído e sincero, me perguntou certo dia, depois de assistir a um vídeo que esta velha escriba gravara para a campanha #ElasPorElas contra o estupro.
Resumi do meu jeito, Euzinha especialista em generalidades. Mas Tiburi o faz com propriedade e autoridade:
“Ora, a misoginia é o discurso de ódio contra as mulheres, um discurso que faz parte da história do patriarcado, do sistema da dominação e dos privilégios masculinos, daquilo que podemos chamar de machismo estrutural, o machismo que petrifica a sociedade em sua base e impede transformações democráticas.”
A filósofa gaúcha cravou a máxima “estupro político” para definir o golpe que afastou a presidenta da República, a pretexto do processo de impeachment em curso no Senado. Tiburi não tem dúvidas:
“(…) a luta pela democracia hoje se confunde com a luta contra a misoginia e todos os ódios a ela associados no espectro amplo do ódio à diferença.”
Ainda que, para Marcia Tiburi, a misoginia traga outro “afeto” como ingrediente: “a inveja”, que a autora enuncia, mas só vai discorrer mais adiante no texto. Antecipo:
“(…) A inveja quase não se expressa, ela se oculta, porque é covarde. O desejo é o seu oposto. O desejo está para a potência como a inveja está para a impotência.”
“Sabemos que o estuprador não tem desejo. Ele odeia e, no fundo, talvez inveje. Não é o desejo que olha para Dilma, mas a impotência de um homem que olha para ela. E esse olhar é destrutivo.”
E aí… não se pode discordar da sua análise, em determinado ponto:
“O que aconteceu com Dilma Rousseff nos ensina a compreender o funcionamento de uma verdadeira máquina misógina, máquina do poder patriarcal, ora opressor, ora sedutor, a máquina composta por todas as instituições, do Estado à família, da Igreja à escola, máquina cuja função é impedir que as mulheres cheguem ao poder e nele permaneçam.”

Avanço no texto, para resumir:
“Dilma Rousseff se confirma no gesto excludente e antidemocrático de Michel Temer como um tabu. Sabemos como um tabu pode virar totem em termos de política. Não voltando ao seu cargo, sua chance de se transformar em heroína histórica aumenta e ela pode ser tornar publicamente o que já é em seu fundamento: símbolo da representação das mulheres extirpadas da política.
Dilma Rousseff foi barrada do lugar ao qual chegou pelo voto que instaura a vontade popular democrática e soberana. Lugar, diga-se de passagem de mulher que foi eleita.
É preciso, contudo, ponderar sobre o papel da reeleição em seu destino político. Dilma não apenas foi eleita, mas o foi duas vezes. Dilma foi a mulher reeleita. Isso incomodou as elites machistas e se intensificou quando, como reeleita, insistiu em ser chamada como “presidenta” e não como presidente.
(…)
Dilma Rousseff, ao dizer-se “presidenta” causou mal estar ao machismo. Interrompeu, talvez sem perceber, o jogo de linguagem machista da história da política no Brasil. Ao afirmar-se presidenta, ela se afirmou como eleita e reeleita potencializando seu lugar – único e pioneiro – de representante justamente das mulheres, histórica e atualmente ainda mais sub-representadas no cenário da democracia brasileira.
(…)
O voto, todos sabemos, com ou sem novas eleições, já não significa nada no Brasil no estado de exceção velado em que estamos vivendo.
Dilma Rousseff foi a primeira mulher eleita – e reeleita – presidenta de um país em que os números de participação feminina na política são vergonhosos. Se cerca de 10 % de mulheres estão presentes na vida parlamentar é, no mínimo, sinal de que vivemos em um país em que as mulheres não são bem-vindas à política. Atraso da nossa política? Certamente. E um país atrasado não é atrasado por acaso.”
Como já disse, o artigo é substancioso e profundo. É longo, e vale à pena ler a integra.