
por Sulamita Esteliam
O estupro é cultura de dominação. O machismo é cultura de dominação. A misoginia é cultura de dominação. O racismo é cultura de dominação.
A casa-grande ainda dá as cartas por aqui. Quem é que vai acabar com isso, senão o povo indignado e organizado nas ruas?
As explicações devem ser buscadas no contexto histórico. O Brasil viveu 300 anos de escravidão.
A mulher negra é mais de um quarto de toda a população brasileira – 26,6% segundo o último censo.
Também o indígena foi escravizado, dizimado física e culturalmente, primeiro pelo invasor, depois pelo bandeirante. Restaram muito poucos para contar a história.
A mulher indígena foi estuprada pelos invasores e pelos paulistas que desbravaram o interior do novo mundo colonial português.
Mas a escrava negra foi usada na lida, explorada como reprodutora de “peças” para o patrimônio, e transformada em objeto contumaz de consumo senhorial, doméstico.
A mulher ainda hoje é “vendida” como produto a ser consumido.
É assim “nas propagandas e novelas/nas cores do arco-íris…”, diz uma canção inédita da década de 1970, do mineiro Alarcone Lalá (de quem tenho orgulho de ser irmã).
Mas a mulher negra é “produto de exportação” para o turista – de Carnaval, de samba, de cultura, de lascívia.
Como bem situa uma promotora de Justiça baiana, em seminário recente sobre racismo e sexismo, “é parte do negócio do turismo”.
A sexualização exacerbada contribui para a naturalização da violência, para a manutenção da cultura da violência -física e sexual.
Em miúdos, para a cultura do estupro, do assédio, do espancamento, da morte de meninas e mulheres – a maioria negra.
O machismo, o patriarcado e a misoginia explicam a desigualdade e a exploração de gênero que viceja em nossa sociedade; em quaisquer dos mundos.
Todavia, a incidência no Brasil, comparada mundialmente, é assustadora.
Consegue ser pior do que se pode imaginar em pesadelos: 51% das vítimas de estupro é negra, 70% são crianças e adolescentes, com menos de 13 anos em sua maioria.
Números de 2011, coletados pelo Ipea no sistema de saúde.
Quer dizer, é amostra reduzida, pois apenas pequena parcela dos registros policiais (que também estão longe de representar a maioria) chegam ao SUS, que alimenta o Sinan/MS.
Naquele ano, foram notificados ao Sinan 12.087 casos de estupro. Representam 23% do número de boletins de ocorrências policiais de estupro no ano seguinte.
As estatísticas no que se refere ao estupro, explícitas na imagem acima, à direita, traduzem a perversidade da herança escravocrata.
É este legado que fala mais alto quando o assunto é violência contra a mulher, negra.
A mulher branca, se é que existe homem ou mulher branca no Brasil, é vítima de violência em graus crescentes – a despeito da Lei Maria da Penha – que ainda assim está em risco. Mas a mulher negra é mais.
Os números não mentem. Fala o Mapa da Violência 2015:
Em 10 anos, o número de mulheres negras assassinadas aumentou 54% – de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013.
Na década focada pelo Mapa da Violência 2015, o número de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8% – de 1.747 para 1.576.
No aspecto sócioeconômico, a discrepância é igualmente gritante.
A mulher negra ocupa os postos de trabalho precários ou informais – algo em torno de 71% delas. O percentual cai para 54% do total da população feminina economicamente ativa, quando a mulher é branca.
Mesmo com nível de escolaridade idêntico, a mulher branca ganha 40% mais do que a negra. Na média, a trabalhadora negra ganha metade do salário da branca – que por sua vez ganha 60% do que recebe um homem branco.
São dados do IBGE.
Há mais: a maioria das mulheres inquilinas do sistema prisional é negra, 68%, quase a metade das quais têm menos de 29 anos (49%), e 50% delas não completaram o ensino fundamental.
Palavra do Depen – Departamento Penitenciário Nacional.

Daí que é importante discutir o que está por trás da prevalência da barbárie contra a população feminina negra.
É fundamental discutir o racismo. E o feminismo.
“Ninguém nasce sabendo da opressão que sofre.”
Tem razão a filósofa Djmila Ribeiro.
Referência no movimento feminista negro e atual secretária-adjunta de Direitos Humanos da cidade de São Paulo, ela constrói frases em entrevista ao El País.
Fala do que conhece, da realidade sofrida e compreendida.
“Se eu luto contra o machismo, mas ignoro o racismo, eu estou alimentando a mesma estrutura.”
É preciso mais do que discutir e compreender. É preciso qualificar as políticas públicas, tratar diferente o que é desigual.

Quem melhor situa a questão é a médica feminista, mestra em Engenharia de Produção e doutora em Comunicação, Jurema Werneck, da ONG Criola.
Encontro uma fala dela a respeito, também no El País, ultimamente o melhor “jornal do Brasil” – o que melhor nos traduz, com certeza .
“Uma política pública justa e democrática precisa ser destinada a grupos específicos.”
É quase um mantra, na verdade flechas certeiras disparadas por Jurema.
Ouvi discurso semelhante dela no seminário Mulher e Mídia, em abril, promovido pelo Instituto Patrícia Galvão em parceria com a ONU Mulheres e Fundação Ford, em São Paulo.
O foco era a epidemia do Zika Vírus e seu impacto na vida das mulheres. Por que é a mulher a vítima principal; pobre e negra.
“É a ausência do Estado na vida dessas mulheres”, diagnostica a médica e feminista – lá e cá.
“A mulher negra tem dificuldade de acessar não apenas a rede de proteção contra a violência, mas todas as outras.”
Ela lembra que muitas delas têm seus homens – companheiros e filhos – mortos, feito formigas (acrescento), pelo Estado.
Se era ruim, antes, que dirá agora. Estamos em pleno desmanche de todas as políticas de redução de desigualdades, de promoção da dignidade, da autoestima e da soberania popular e da Nação.
Como estranhar, quando a própria democracia está sob ataque?
Nem a educação, que é meio pelo qual se pode redimir a opressão secular, é poupada. Quer-se eliminar o exercício do pensar. Fala-se, até, em privatizar a universidade pública.

A ministra das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos do governo Dilma, ex-ministra da Seppir – Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, Nilma Lino Gomes, registra sua preocupação:
“Estamos na conjuntura de um golpe de Estado e eu tenho chamado atenção de que esse é um golpe parlamentar, midiático, de classe, de gênero e de raça. E nós temos visto a emergência de um fundamentalismo religioso e político muito sério (…). Me preocupa muito, porque um dos focos onde essa onda conservadora tem investido é a educação.”
A fala da ministra Nilma Lino foi colhida pela Agência Brasil no seminário referido no inicio desta postagem, na Bahia.
O evento integra as dezenas de comemorações País afora pelo Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. O 25 de julho celebra a resistência da mulher negra na América e no Caribe, desde 1992.
Aqui no Brasil, homenageia a heroína negra Tereza Benguela, líder quilombola no século XVIII, no Vale do Guaporé, no que hoje é Mato Grosso.
Liderou o Quilombo Quariterê, a partir do assassinato do companheiro, Zé Piolho, por soldados locais – da década de 1730 ao fim do século.
Era conhecida como “Rainha Tereza”, mas governava com um “parlamento”. Também ela foi capturada e morta por forças policiais.
*****************
Postagem revista dia 26.07.2016, às 19:29 hora: inclusão de crase faltante no título – … e à dignidade.
3 comentários