
por Sulamita Esteliam
Luiz Inácio falou, e Lula tem razão: “Começou hoje a semana da vergonha nacional”. O ex-presidente da República se refere ao início do julgamento do impeachment, que é fraude, da presidenta Dilma Rousseff no Senado. Mas Lula, talvez, se esqueça de que vergonha é para quem tem.
O mundo inteiro está de olho no que acontece do Brasil. Voltamos a ser a lata de lixo do planeta, no que se toca à Democracia.
“É o mais sinistro golpe à democracia brasileira desde 1964”, define com precisão o ator Wagner Moura, registra o Conversa Afiada. A lembrar que artistas e intelectuais estrangeiros enviaram carta ao Senado brasileiro manifestando sua preocupação com o que acontece aqui.
Faço minha a pergunta da senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) na abertura da sessão de julgamento nesta quinta, no plenário do Senado Federal: que autoridade moral tem o Senado para julgar Dilma?
Mas à essa hora, tal qual o complexo de vira-latas, o pudor, se resta, enfia a cabeça na areia, feito avestruz.
Como bem diz meu companheiro, Júlio, “essa gente não tem País, o dinheiro é a pátria-amada.” E dinheiro é poder.
Estão aí a justiça e o justiçamento seletivos da Lava Jato, por exemplo, que não nos deixa mentir. Mas não só.
Até as areias da Praia de Boa Viagem sabem que o poder econômico, o mesmo que move a corrupção, está por trás da fraude que resulta o processo de impeachment contra a presidenta legítima do Brasil.
Não é apenas o cinismo hipócrita que faz de conta que se quer varrer os malfeitos desse País, desde que venha ao caso e se não lhes atinja.
O bate-boca de autoridades em torno da delação da OAS, envolvendo a Força Tarefa de Curitiba, Procuradoria Geral da República, STF e Gilmar Mendes é só o último exemplo. Aliás, não deixe de ler o que escreve Jânio de Freitas, na FSP, a propósito.
E as delações de Marcos Valério sobre o mensalão tucano, alguém sabe, alguém viu? O deputado estadual mineiro, Rogério Correia (PT), entrou esta semana com requerimento na Procuradoria Geral do Estado, requerendo acesso ao documento. Segundo ele, em matéria no Vi o Mundo, foi enviado para Rodrigo Janot, na PGR em Brasília, “na moita”.
É o dinheiro das empresas que financia as campanhas eleitorais, por dentro e por fora, para cobrar a preço de ouro a ascensão ao cargo público. Quer dizer, por tabela, é dinheiro público – o seu, o meu, o nosso dinheirinho.
É o dinheiro das entidades empresariais que bancam os “revoltados on-line”, de cachê, as manifestações de rua verde-amarelas de camisas CBF, a pressão sem trégua das entidades patronais sobre os parlamentares pelo impeachment fraudulento de Dilma. Recomendo a leitura de reportagem a respeito da Agência Pública.
Organizações empresariais, como a Fiesp e a Fierj, dentre outras, que se locupletam com dinheiro do Sistema S, dinheiro público. Os mesmo senhores empresários que condenam as políticas públicas para redução das desigualdades, os benefícios sociais ao pobre e os direitos conquistados pelo trabalhador.
São os mesmos que deitam e rolam na renúncia fiscal a expandir seus investimentos, no financiamento a juros subsidiados dos bancos públicos, na redução de impostos para manter vagas em suas empresas. Isso sem falar na sonegação escandalosa, com ou sem manipulação das brechas legais.
A revista Carta Capital traz artigo lapidar a respeito, do jornalista e documentarista Carlos Juliano Barros. Desnuda parte do funcionamento do capitalismo e da democracia à moda brasileira, a partir de um exemplo pernambucano. Transcrevo:
A riachuelização do Brasil
por Carlos Juliano Barros
Você já ouviu falar de Flávio Rocha? Nascido no Recife, ele é o herdeiro e presidente da Riachuelo, grupo empresarial de sua família que, nos últimos dez anos, virou referência de fast fashion e se transformou na rede de varejo de moda que mais cresce no Brasil. Antes de trilhar a carreira de executivo, Flávio Rocha até se aventurou na política entre as décadas de 1980 e 1990, quando chegou a ser deputado federal e correligionário do ex-presidente Fernando Collor de Melo.
Como quase todo CEO de sucesso que se preze, Flávio Rocha é dado a hábitos disruptivos que transformam homens de negócio em super-heróis e artistas. Já correu algumas vezes a maratona de Nova York e coleciona nas paredes de sua casa obras exclusivíssimas – do ícone pop americano Andy Warhol ao cerebral pintor venezuelano Carlos Cruz-Díez.
Só que Flávio Rocha vai muito além de um executivo vencedor. Um dos mais barulhentos porta-vozes do empresariado nacional a defender o impeachment de Dilma Rousseff, o presidente da Riachuelo é um liberal convicto e crítico mordaz do “capitalismo de conluio” – ou crony capitalism, na expressão popularizada pelo professor da Universidade de Chicago, Luigi Zingales – que em sua opinião se instalou no Brasil durante a era PT. Um dos seus alvos prediletos é a “política dos campeões nacionais” do BNDES, o banco estatal de fomento da economia brasileira.
De fato, não há como negar que o governo federal usou e abusou do BNDES para distribuir dinheiro farto a juros subsidiados, às vezes até abaixo do próprio custo de captação de capital, para os amigos da corte – Eike Batista e JBS que o digam.
- Placa mostra o apoio do governo federal à Guararapes Confecções em Natal (Foto: Lilo Clareto / Repórter Brasil)
Para os adversários do PT, a farra do dinheiro barato liberado a gigantes do PIB nacional, escolhidos à revelia da meritocracia do mercado, tolheu a formação do mercado de capitais e inibiu o financiamento privado no Brasil.
Em recente entrevista concedida a Miriam Leitão, na Globo News, Flávio Rocha foi categórico sobre o assunto: “Essas deformações, como subsídios na hora do crédito, também têm o efeito de distorcer a economia”. Mas o presidente da Riachuelo só se esqueceu de mencionar que a empresa de sua família também encheu a pança na boquinha dos juros camaradas do BNDES – tudo dentro da lei, obviamente.
Uma rápida consulta pública ao site do banco (abaixo) mostra que, entre 2009 e 2016, a Riachuelo e a indústria do grupo (chamada Guararapes Confecções) levantaram financiamentos da ordem de R$ 1,44 bilhão para, dentre outras coisas, investir numa fábrica no Ceará e expandir a rede de lojas país afora. Como se não bastassem as taxas de juros do BNDES mais baixas do que as praticadas pelo mercado, a planta industrial construída em Fortaleza, assim como outra fábrica instalada no Rio Grande do Norte, também se beneficia da isenção de 75% do Imposto de Renda – informação que pode ser pescada do próprio site da Riachuelo.
Mesmo sem citar esses dados, Miriam Leitão foi obrigada a jogar a real em cadeia nacional com o presidente da Riachuelo: “Quando os empresários brasileiros vão ser coerentes com o liberalismo que pregam?”
Flávio Rocha é um entusiasta declarado da “Ponte para o Futuro”, programa de reformas liberalizantes encampado pelo PMDB do presidente-interino Michel Temer. E já elegeu a sua prioridade: a flexibilização da legislação trabalhista. Na verdade, enquanto a CLT não vira letra morta, a Riachuelo já vem cortando os custos de produção do seu império de fast fashion.
Parte da confecção de roupas da rede, por exemplo, é terceirizada para oficinas do sertão do Seridó, no Rio Grande do Norte, onde autoridades já flagraram violações graves como jornadas excessivas, trabalho sem carteira assinada e pagamentos abaixo do salário mínimo.
A transferência de parte da produção da Riachuelo para o sertão do estado se deu depois de 2012, quando o Ministério Público do Trabalho multou em R$ 27 milhões a empresa por descumprimento de normas de saúde e segurança na fábrica localizada na capital Natal. O caso foi resolvido por meio de um acordo.
Atualmente, Flávio Rocha é um dos mais eminentes arautos do processo de “riachuelização” que vem se desenhando no país. À nata dos empresários, incentivos fiscais e crédito subsidiado – mesmo quando essas medidas são tidas como ataques aos princípios do livre mercado. Ao grosso dos trabalhadores, empregos precários, exaustivos e sub-remunerados, sem qualquer proteção do Estado. E assim se constrói a ponte para o futuro no Brasil.
*Carlos Juliano Barros, diretor de “Entre os Homens de Bem”, é jornalista e documentarista. Em parceria com Caio Cavechini, dirigiu “Carne Osso – O Trabalho em Frigoríficos”, vencedor do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos de 2013, e “Jaci – Sete Pecados de uma Obra Amazônica”, selecionado para o festival “É Tudo Verdade” e vencedor da Mostra Ecofalante de 2016.