por Sulamita Esteliam
Quando eu era criança, minha mãe vestia a prole com a roupa domingueira e seguíamos em comitiva, a pé, para assistir a Missa do Trabalhador, na Praça da Cemig, em Contagem, nas Minas Gerais. Depois da devoção, a festa.
Houve um tempo em que, da praça, seguíamos para a fábrica têxtil onde minha tia paterna ainda trabalhava, e que organizava uma celebração para os operários e suas famílias, com direito a refrigerantes, comes e bebes e brindes.
Melhor do que isso só o Natal, que garantia cesta de guloseimas, pagas à prestação o ano inteiro pela mesma tia.
Missa e festa eram uma alegria que compensava a marcha de cerca de 2 km até o local, e que incluíam travessia de linhas férreas e ruas sem calçamento, e córregos mal-cheirosos, até atingirmos o asfalto. Já na avenida, não havia como escapar de longo trecho ladeira acima até a praça.
Morávamos, no periférico Bairro das Indústrias, bem no ponto onde Belo Horizonte e Contagem se confundem. Chegávamos esfalfadas e suadas, crianças e mulheres, mas contentes, pela rara oportunidade de lazer.
A volta para casa era sempre uma penúria, mas quem se lembrava disso? Só quando minha tia foi demitida do cotonifício, subir o morro ficou bem mais difícil.
Veio o golpe militar, a ditadura, mas o ritual se manteve, até adolescermos.
Por dever de ofício, voltaria novamente à Praça da Cemig, mas como repórter, para cobrir a celebração. A missa, entretanto, chega à sua 41ª edição, e num momento em que, novamente. a Igreja se torna ponto de apoio fundamental à luta dos trabalhadores.
Nos tempos de menina, não fazia ideia de que comemorar o 1º de Maio envolvia luta para conquistas e pela manutenção de direitos. Essa consciência só chegou mais tarde, embora a primeira filiação sindical tenha vindo junto com o primeiro emprego de carteira assinada, aos 15 anos.
Então, sou até capaz de compreender alguns jovens que não sabem avaliar o peso do atual momento no presente e no futuro de suas vidas; ou porque não se deram ao trabalho de estudar História, ou porque não compreenderam ainda seu lugar no mundo.
Mesmo que a História seja escrita pelos opressores, algum vislumbre nos protege de termos a cabeça esmagada pelo inimigo, que sorri enquanto lhe esgana.
Sob o chicote da casa-grande, o Zé e a Maria Povinho não podem esperar desde desgoverno outra coisa que não o escárnio, a indiferença, a mentira e o cinismo. Ou não é isso que a mensagem do mordomo usurpador , divulgada nas redes sociais, e prevista para se repetir à noite em cadeia de rádio e TV, traduz?
Para ele, o sinônimo de degola de direitos é “modernização das leis trabalhistas” e isso faz do 1º de maio deste ano um “momento histórico”. Para ele, as “reformas” vão gerar empregos para jovens, dar direitos ao trabalhador temporário e harmonizar as relações entre o trabalho e o capital.
O senhor des-presidente acha que engana a quem? Postura vergonhosa de um presidente ilegítimo que, mais uma vez, cheira a provocação. É muita desinteligência emocional para um só político.
Não basta sufocar, degolar, tem que cuspir na cara e chutar o cadáver.
Uma insensibilidade que transborda em toda oportunidade, como na entrevista ao Ratinho, do SBT, em que disse que o Brasil “precisa de um marido para não quebrar”. A presidenta legitima, traída por seu vice que ora usurpa o poder devolveu na lata: “(…) um primor de misognia e patriarcalismo. (…fantástica cegueira política”.
Faço de Dilma Roussef, minhas palavras. “É estarrecedor que no século 21 um presidente, mesmo ilegítimo, tenha opiniões tão tacanhas, rebaixadas e subalternas sobre o papel da mulher na sociedade brasileira.”
Histórica foi a Greve Geral que parou 35 milhões de trabalhadores e levou às ruas outros milhares em protesto contra o desmonte de seus direitos, dia 28. Mobilização que não se via há décadas. Fez-me lembrar a de dezembro de 1986, quando o Brasil parou geral, e até os jornalistas cruzaram os braços em todos os quadrantes, inclusive na Globo.
Harmônica, sim, a greve em 2017, não fosse a truculência policial que fez várias vítimas, no Rio, em São Paulo e em Goiânia. Dentre eles, um estudante de Ciências Sociais de 32 anos, que teve traumatismos craniano e facial, passou por cirurgia de seis horas e segue em estado grave no hospital na capital do Goiás. Sem contar três presos políticos na capital paulista
Histórico é o retorno dos trabalhadores às ruas em luta por nenhum direito a menos, quando deveria no Primeiro de Maio, simplesmente, homenagear aqueles que deram seus sangue, suor e lágrimas por dignidade no mundo do trabalho e celebrar as conquistas de sua classe.
Histórica é a ganância e a opressão.
As manifestações do Dia do Trabalhador – não dia do trabalho, como querem os patrões e servidores de casaca – estão aí, corroborando a mobilização de dois dias atrás, esfregando na cara dessa gente o despertar da consciência. E tem mas pela frente.
Uma colega de grupo de feministas que participo no zap-zap foi muito feliz em buscar em Santo Agostinho a frase para esse dia: “A esperança tem duas filhas lindas: a indignação e a coragem. A indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem, nos ensina a mudá-las.”
A propósito, há uma crônica do escritor uruguaio, Eduardo Galeano (3/9/1940-13/4/2015), compartilhada no mesmo grupo, sobre o esquecimento da origem do 1º de Maio. É do Livro dos Abraços (L&PM, 1989). Encontrei-a publicada na Rede Brasil Atual, em 2015, com autorização exclusiva.
Não devo, portanto, reproduzi-la aqui, mas posso resumi-la.
Conta que, estando em Chicago, Galeano foi visitar o bairro de Heymarket e pediu a amigos que o mostrassem o local onde haviam sido enforcados os operários que lutavam por redução de jornada de treze para oito horas, em 1886. Isso mesmo, no século XIX.
Ninguém sabia.
O autor constata: “Não foi erguida nenhum estátua em memória dos mártires de Chicago nem na cidade de Chicago. Nem estátua, nem monolito, nem placa de bronze, nem nada.”
E prossegue:
“O primeiro de maio é o único dia verdadeiramente universal da humanidade inteira, o único dia no qual coincidem todas as histórias e todas as geografias, todas as línguas e as religiões e as culturas do mundo; mas nos Estados Unidos o primeiro de maio é um dia como qualquer outro. Nesse dia, as pessoas trabalham normalmente, e ninguém, ou quase ninguém, recorda que os direitos da classe operária não brotaram do vento, ou da mão de Deus ou do amo.”
A procura resultou inútil, mas Galeano foi levado por seus amigos a uma livraria, tida como a melhor da cidade. E lá, por acaso – se é que acasos existem – acabou se deparando com um cartaz que reproduzia um provérbio da África, que dizia:
“Até que os leões tenha seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador.”
Fotos do alto: SEsteliam e Agência CUT
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