por Sulamita Esteliam
Dia 28 de março parece marcado para ser uma espécie de Dia D na história política do Brasil.
Há 50 anos era assassinado pela PM, o estudante paraense Edson Luís. No Rio de Janeiro, a cidade cujas forças nem tão ocultas assim executaram Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, há cerca de 15 dias.
Coincidência que o encerramento da Caravana Lula pelo Brasil no Sul do País tenha se dado justo nesta data. Um ato público em Curitiba agrupou lideranças das esquerdas e diferentes movimentos sociais e milhares de pessoas contra a escalada do fascismo.
Mas não tem nada de coincidência que o ex-presidente mais amado do Brasil e comitiva tenham sido atacados por milícias armadas, um dia antes, num cumulativo de agressões que redundaram num atentando a bala.
Não deixa de ser grave porque não resultou em cadáveres.
Foi ação de terrorismo político e tem que ser apurada e punida com rigor, para que não se repita.
Também não é coincidência que num país sob golpe permanente, ativistas sociais e lideranças populares estejam sendo mortas ou encarceradas sob qualquer pretexto.
Até agora não se sabe quem matou a vereadora do PSol e ativista social e seu motorista. Morreram em consequência da atividade política de Marielle. Até as autoridades locais o reconhecem.
Os encarregados da investigação dizem que estão “chegando perto”. Mas até que se conclua e se aponte os culpados, as suspeitas continuam suposições. E caminham na mesma direção dos executores da chacina de cinco jovens, de 16 a 20 anos, em Maricá, no último domingo.
Todos ativistas culturais e políticos. Todos negros, todos pobres.
No sábado, a PM invadira um baile na Rocinha. Chegou atirando. Deixou dois corpos estirados no chão. Outros seis foram levados ao hospital, mas não sobreviveram.
Todos jovens. Pelo menos um era preto, Matheus Duarte de Oliveira, 19 anos, que ganhava o pão de cada dia dançando, enquanto não encontrava trabalho.
A provar que a intervenção político-militar no Rio de Janeiro não traz paz nem segurança. Antes carrega, de forma direta, como denunciava Marielle, licença para massacrar a população mais carente.
Vida de gado de um povo infeliz, preso na raiz…
De chacina em chacina, política ou trivial – com perdão da palavra exata – o Brasil vai matando seus filhos e filhas.
Morte matada, por balas, ou pela guilhotina da fome, ou do desemprego galopante, como nunca dantes neste país.
A humilhação de cada dia.
A calúnia, a difamação, a desfaçatez permanentes.
A vergonha continuada.
O ódio que dilacera.
A ganância que desmantela.
Matam pessoas, os horizontes, a esperança.
Quem tem mais de 50 anos sabe bem o que significa vislumbrar uma luz no fim do túnel.
Há 50 anos mataram Edson Luís de Lima Souto. Não era preto, era caboclo, era pobre.
Não era liderança estudantil. Era um secundarista, que fazia suas refeições no restaurante Calabouço, no centro do Rio. A comida era ruim, mas barata. Foi saciar a fome e encontrou o arbítrio e a morte.
Anos depois o RU Central – Restaurante Universitário trocou de nome, para Estudante Edson Luís. Se serve de consolo para quem perdeu um filho, um irmão, um amigo.
O local era ponto de encontro dos estudantes, que preparavam mais uma manifestação contra o governo ditatorial. A polícia atacou, e restou o corpo do menino de 18 anos estendido no chão.
A massa estudantil não deixou que o corpo fosse removido para o IML. Ao invés disso, carregou-o pelas ruas do Rio até as escadarias da Assembleia Legislativa, onde foi necropsiado e velado.
Outro estudante, Benedito Frazão Dutra, também ferido no ataque policial, foi levado ao hospital, e acabou morrendo, também.
Mas Edson Luís tornou-se símbolo do veneno totalitário e da resistência audaz e necessária.
Sua morte determinou o ciclo mais intenso de protestos contra a ditadura civil-militar que toma o Brasil de assalto quatro anos antes. E que deu as cartas, à base da repressão e tortura, e centenas de mortes, nos 17 anos seguintes.
Desencadeou protestos em escala crescente Brasil afora, e truculência na mesma medida. O Rio de Janeiro parou no dia do enterro. Da autópsia e velório em praça pública, à missa de sétimo dia na Candelária, houve mobilização e revanche.
O mundo estava em polvorosa, por conta do maio em Paris. No Brasil, a morte do estudante foi a faísca no combustível. Explodiu na Passeata dos 100 mil, em junho, no Rio. Que repercutiu e se replicou por todo o País, unificando o movimento estudantil para por “Abaixo a Ditadura!”.
Em dezembro de 1968 veio o AI-5, e o terror baixou com força total.
Ora direis, de certo perdestes o censo. E vos direi, no entanto…
Resistimos, padecemos e sobrevivemos. Acreditamos que era possível recomeçar e reconstruir um novo caminho.
Não obstante, as feridas não cicatrizaram diante do exercício continuado dos apelos de paz. Reabriram às constantes futucadas.
Há quem diga que não se pode misturar coisas diferentes: a morte de Marielle, as chacinas no Rio, o atentado contra Lula.
Ora, mas o balaio é o mesmo, e a fruta é o ódio, cevado diuturnamente. O fascismo se alimenta do ódio.
O objetivo único é cavar ainda mais fundo o abismo social que mantém os privilégios da casa-grande.
De luta de classes se trata.
Como bem define a advogada curitibana, membro do Coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia, autor da denúncia-crime contra mentores e autores do atentado contra a caravana de Lula no Sul do País.
A paz teima em não encontrar eco do outro lado da fronteira civilizatória.
Hora de tomar prumo e mudar o rumo. Quem cala, consente.
A História é uma velha senhora, que hoje ri e amanhã te devora.
Não há mentira, escárnio ou licença poética que resista aos fatos.
Que venha a ressurreição!
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Duas músicas inspiradas em Edson Luís para fechar a postagem: Menino, de Milton Nascimento e Ronaldo Basto, do álbum Geraes (1976) e Calabouço, de Hosé Ricardo (1973).
Reproduzo a partir da Rede Brasil Atual.