
por Sulamita Esteliam
Duas décadas depois da morte do cacique Xicão, o povo Xukuru conquista o direito à demarcação do território sagrado de seus ancestrais, Na Ororubá, em Pesqueira, Agreste pernambucano. Uma conquista que chega através da Corte Interamericana de Direitos Humanos, aonde o Brasil foi enquadrado pela primeira vez. É simbólico que seja por uma causa indígena.
O governo brasileiro tem 18 meses, a contar de 12 de março deste ano, para terminar a demarcação das terras e para indenizar a nação Xukuru em US$ 1 milhão pelos danos advindos da demora na regularização.
Leio a boa nova no Marco Zero Conteúdo, reportagem de Mariama Correia, em texto claro e fluído, e a escolho para celebrar o dia 19 de abril, Dia do Índio. Em louvor aos meus ancestrais que sucumbiram nas matas e serras das Geraes.
A retomada do território sagrado começou em 1990 e foi até 2008. E a custa de enfrentamento e vidas, muitas vidas,para além das batalhas do período.
Estava a menos de um ano no Recife e lembro-me bem da comoção que foi o assassinato de Francisco de Assis Araújo, o cacique Xicão, em 1998. E dos temores, nos movimentos sociais, do que seria do destino do povo Xukuru, dali em diante.
Afinal seria chefiado por herdeiro natural de Xicão, o filho Marcos Luidson Araújo, o Marquinhos Xukuru. Ele tornou-se o cacique mais jovem do Brasil, dois anos depois da morte do pai.
Houve disputas internas e o próprio Marquinhos, chamado por Xicão algum tempo antes da morte, esteve ameaçado de não sobreviver.
Pois eis que o rapaz, que tinha apenas 21 anos quando assumiu, passou por alguns transtornos, as revelou-se guia valente e capaz de recuperar a serenidade e a firmeza, trilhando as passadas do pai na recuperação e manutenção do território. Não só, também na preservação da unidade e identidade cultural de seu povo.
“O povo Xukuru de Ororubá está estabelecido em uma área de 27.555 hectares, no Agreste de Pernambuco, estado que tem a quarta maior população indígena do país. No alto de uma cadeia de montanhas, o território demarcado abriga 10,5 mil indígenas distribuídos em 24 aldeias. Cercado pela Mata Atlântica e pelos rios Ipanema e Ipojuca, que formam cinco barragens, fundamentais para o abastecimento do povoado e do município de Pesqueira, onde estão localizadas as terras indígenas, o cenário em nada lembra a aridez comum à região.”
Na verdade, ainda não terminou. Há uma série de frestas que ainda ameaçam a integridade territorial. Mas a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos derruba o marco temporal como argumento para retomada das terras conquistadas dos não-indígenas. Além de ser um precedente importante para a causa indígena em todo o país.
Como diz a letra do toré Xukuru, “é no terreiro da Jurema que o Xukuru tá trabalhando, e ele não tá de brincadeira. Obrigado, Ororubá!”
Transcrevo um trecho da reportagem, pois que é naturalmente longa. Pode ser lida na íntegra clicando abaixo no nome do portal de jornalismo independente de Pernambuco, ao lado da assinatura.

Fronteiras da identidade Xukuru
por Mariama Correia – no Marco Zero Conteúdo
A morte é, para o povo Xukuru de Ororubá, uma passagem. O índio que completou sua missão passa a viver nas pedras, nas matas e nos rios. Torna-se um encantado, um guia espiritual do povo. A natureza sagrada, casa dos seus ancestrais, é fonte de alimento, abrigo e inspiração para a tribo. Da mãe terra tiram o sustento do feijão, da fava, da banana, do milho, da macaxeira. Nela também serão plantados um dia.
O povo Xukuru de Ororubá está estabelecido em uma área de 27.555 hectares, no Agreste de Pernambuco, estado que tem a quarta maior população indígena do país. No alto de uma cadeia de montanhas, o território demarcado abriga 10,5 mil indígenas distribuídos em 24 aldeias. Cercado pela Mata Atlântica e pelos rios Ipanema e Ipojuca, que formam cinco barragens, fundamentais para o abastecimento do povoado e do município de Pesqueira, onde estão localizadas as terras indígenas, o cenário em nada lembra a aridez comum à região.
Mas o que a beleza desse oásis não conta é o duro processo de lutas e perdas no qual ele foi conquistado. A partir de 1990, as retomadas das terras tradicionais pelos índios, antes nas mãos de latifundiários e de famílias influentes no estado, deixaram um rastro de sangue na Ororubá, solo sagrado da tribo. Com as ocupações das áreas habitadas por não-indígenas, os Xukurus conseguiram chamar atenção da mídia e pressionaram o governo para acelerar as demarcações, mas despertaram a ira dos donos de terra.
Entre os tantos indígenas mortos nos conflitos com os fazendeiros, pelo menos seis lideranças da tribo foram assassinadas, incluindo Francisco de Assis Araújo, o cacique Xicão, morto brutalmente em 20 de maio de 1998. “Plantado para que deles nasçam outros” no solo Ororubá, Xicão virou semente que brotou com a continuação das retomadas territoriais, as quais perduraram até 2008 sob a liderança do seu filho, Marcos Luidson Araújo, 39 anos, o cacique Marquinhos Xukuru.
Somente este ano, duas décadas depois da morte de Xicão, a luta do povo Xukuru conquistou um reconhecimento histórico. A violação dos seus direitos colocou o Brasil, pela primeira vez, no banco dos réus de uma corte internacional pela causa indígena. Em uma decisão sem precedentes, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o estado brasileiro por violar os direitos da etnia e o país agora tem 18 meses, a contar de 12 de março, para finalizar a demarcação do território tradicional da tribo, ainda incompleta, e indenizar os índios em US$ 1 milhão pelos danos sofridos em virtude da demora na regularização fundiária.
Marco para os indígenas de todo o Brasil, a decisão define a legitimação das conquistas e da resistência dos Xukurus, um povo para o qual o território representa a sua própria identidade.
A palavra Xukuru, na tradição da etnia, deriva do nome de um pássaro (uru), que se tornou raro na região por causa do desmatamento a partir do avanço das grandes criações de gado. Os índios dizem que o animal começou a ser visto com maior frequência depois da reconquista do território, como se a natureza, ao renovar-se, oferecesse uma metáfora perfeita para o povo que nela habita. Assim como o uru, ao ganhar autonomia negada por tantos anos sobre o próprio lar, a tribo também retornou às suas tradições.
“A gente era proibido pelos fazendeiros de falar nosso idioma, que foi perdido, e de fazer nossos rituais”, conta o atual cacique, Marquinhos Xukuru. Antônio Monteiro Leite, 72 anos, é testemunha desse tempo de servidão. “Trabalhávamos de domingo a domingo nas criações de gado sem receber nada, só pela moradia. Não podia plantar fava, macaxeira, era só capim. Quando crescia, eles mandavam a gente plantar em outra parte e assim tudo foi virando capim”, lembra. Hoje ele comemora a liberdade de plantar e de tocar orgulhoso o seu membi – instrumento de sopro de som agudo e rústico, que costura o compasso marcado do toré, dança que une toda a tribo. “Sou um dos poucos que sabem tocar da minha geração, mas hoje já tem jovens aprendendo.”
O ciclo de silêncio e medo começou a ser quebrado a partir da primeira retomada, em Pedra D’água (1990), quando a tribo resistiu unida por 90 dias nas ocupações das fazendas sob o comando do cacique Xicão. “Em cima do medo veio a coragem”, cita José Barbosa dos Santos, o vice-cacique Zé de Santa, lembrando da bravura do líder que virou mártir do povo. O enfrentamento aos fazendeiros obrigou a Fundação Nacional do Índio (Funai) a negociar com os latifundiários e a retirar não-indígenas do território tradicional. “A primeira retomada está marcada com uma barritina (espécie de chapéu feito de palha que é símbolo da tribo) no mapa que mostra as autodemarcações. Chamamos assim porque, diante da morosidade do poder público em agir, nós fomos lá e demarcamos”, explica o cacique Marquinhos, apontando para o registro cartográfico que eles mesmos produziram.
Na percepção da antropóloga com mestrado focado no povo Xukuru, Vânia Fialho, a autonomia sobre o próprio território, a possibilidade de plantar, colher, de expressar suas tradições livremente, produziu, além de uma independência econômica, o resgate das tradições do povo. “As aldeias são fixadas em terrenos sagrados, onde estão antepassados. Então há um valor muito maior do que a simples propriedade. É um sentido religioso e de pertencimento relacionado à percepção da etnia sobre o seu passado, e é determinante também para seu presente e futuro”, analisa.