Racismo e outros fragmentos do estado de arbítrio

por Sulamita Esteliam

Circula em grupos de ativistas, de esquerda, no zap-zap, o texto de depoimento da advogada Valéria dos Santos, ex-atleta, negra e moradora da Baixada Fluminense. É o retrato em preto e branco do que este país sempre foi, racista, desigual e preconceituoso. O país da casa-grande e da senzala.

O texto é a radiografia do que estamos nos transformando: numa terra em que os direitos, como a lei, dizem pouco ou nada para quem se acha acima do bem e do mal. Mas sempre se pode piorar.

No dia 11 de setembro, Valéria foi presa e algemada por policiais militares em Duque de Caxias, ao comando de uma juíza leiga de um juizado dos direitos do consumidor. A advogada protestou quando a “meritíssima” por prazo determinado lhe recusou o acesso à peça de defesa da parte contrária.

Desrespeitou, portanto, as leis, suas prerrogativas de advogada e seus direitos humanos constitucionais.

Fazem isso com uma advogada, respaldada por sua entidade organizativa até há bem pouco tempo simbólica do ponto de vista social e humanitário.

Mas se fazem isso, até, com um ex-presidente da República, o mais bem avaliado e amado em todos os tempos, com a cumplicidade do silêncio obsequioso da mesma OAB, imagina o que não fazem com o Zé e a Maria Povinho.

“A ficha do racismo só caiu quando eu estava no chão, algemada. Os policiais me pegaram cada um por um braço na sala de audiência e me arrastaram em pé até o corredor. Não fui violenta com ninguém, só não me movi. Quando chegou do lado de fora da sala me deram uma rasteira e eu caí sentada. Depois colocaram as algemas.”

“Nesse momento chegou o delegado da OAB. Ele foi muito firme:”Tira a algema dela, agora”. Os policiais obedeceram na hora. Já eram quatro a essa altura. Aí você pensa: como é a formação da nossa sociedade? Vamos dar os nomes: tem o senhor de engenho, a senhorinha, o capitão do mato. E quem estava no chão algemada? Eu.”

“O Estado é racista, entendeu? Mas se eu falo isso é mimimi, é vitimismo. Por isso, não queria atrelar esse caso ao racismo, porque eu não quero ouvir essa resposta. A minha luta ali era garantir o meu direito de trabalhar. O racismo vai voltar a acontecer. Eu tento abstrair, ignoro. Mas não dá para tirar o meu ganha-pão.”

Bem, o depoimento da advogada foi publicado pela Folha de São Paulo, um jornal comercial, que não permite a reprodução de seu conteúdo.  Arrisco os trechos acima, mas o link está aqui. Vale à pena ler a íntegra.

Valéria é ex-atleta, com passagem por diferentes equipes brasileiras e de universidade estadunidense, onde jogou basquete profissionalmente. Lá, estudou enfermagem com bolsa de estudos. De volta ao Brasil, cursou Direito em universidade particular, com auxílio do ProUni.

Casada, e ora separada de um cidadão norte-americano, tem dois filhos que devolveu para o pai por temer pela segurança e pelo futuro deles se insistisse em criá-los na Baixada Fluminense.  Há sete anos está longe dos rapazes.

E se a advogada fosse branca? Como você acha que a juíza leiga – advogada com mandato de dois anos em juizados de pequenas causas – agiria?

Valéria recomenda uma boa olhada no vídeo – postado acima:

“O vídeo fala por si. Você colocaria uma mulher branca, loira ou de cabelo castanho, pele mais clara, algemada e sentada no chão?”

Como fazer para vencer o racismo e tais situações ilegais de constrangimento?

A resposta, meu bem, a própria advogada dá:

“É lutar. Não adianta. É tentar não se abater a cada pedra que jogam. É dolorido? Muito. Mas temos que continuar lutando porque, em algum momento, irão te escutar. Pessoas também ficarão constrangidas e farão algo a respeito. Queriam me calar, mas não conseguiram.”

Estas duas últimas falas não estão na folha, mas na entrevista que Valéria Santos concedeu ao Jota, sítio jurídico de livre compartilhamento. As respostas em muito se assemelham ao depoimento dado à FSP, mas sem a mesma carga emocional. Ambas as matérias publicadas dia 12.

Transcrevo a íntegra da entrevista assinada por Gustavo Altman – na Folha, quem assina é Marina Estarque:

Valéria Santos em entrevista coletiva na OAB-RJ, reprodução FB

Qual era o caso em que a senhora estava atuando na segunda-feira?

Um caso simples, uma audiência de direito de consumidor. Sem muita complexidade.

E o que houve de fato?

A audiência foi remarcada para a semana que vem porque o procedimento foi violado. Aquilo é um ato público que foi violado. Foi remarcado para a semana que vem para uma próxima audiência. Minha prerrogativa como advogada não foi respeitada. Eu estava brigando por isso, pelo meu direito de trabalhar e pelo direito da minha cliente.

Foi noticiado que houve algum tipo de problema com a carteirinha da OAB. Foi isso mesmo?

A carteira foi entregue à juíza, isso não tem o que questionar. Ela solicitou a carteira, aí passei meu número e, com o número, ela pode entrar no Cadastro Nacional de Advogados (CNA) e lá vai ter minha foto, todas minhas informações. O meu registro ainda não está atualizado, então não tinha minhas informações. Mas eu busquei na minha bolsa e a carteira foi entregue. Não há o que discutir sobre a carteira. E o juizado permite que, pelo valor da causa, a cliente não precisaria estar representada necessariamente por alguém com carteirinha da OAB. Quando se fala em vara cível, aí sim precisa de um profissional com carteira ativa. No juizado e com esse valor de causa, não.

A partir de que momento iniciou-se o conflito, então?

A questão toda é que não houve acordo e eu teria que ter acesso à peça de defesa do réu. Mas não tive esse acesso. Não teve discussão, teve violação de prerrogativa. Estava buscando o direito de ver o documento, de ver a peça de defesa. E ela deu o ato como encerrado sem poder fazer isso já que eu não tinha visto ainda a peça da defesa. Nossa Constituição é clara, no artigo 5º, inciso LV, a respeito da ampla defesa e do contraditório. Isso não foi ofertado naquele momento para a minha cliente. Minha função como advogada era ver o documento e deixar isso registrado em ata da audiência.

A senhora já tinha passado por alguma situação parecida? Isso ocorreu pelo fato de a senhora ser negra?

A minha cor da pele não vai mudar. Já sofri antes e vou continuar sofrendo. Isso é fato. Mas a minha questão no caso é minha prerrogativa como advogada. Eu não deveria ter sido algemada, meu direito foi violado.

O tratamento seria parecido se fosse com uma advogada branca?

O que você acha? Você analisa. O vídeo fala por si. Você colocaria uma mulher branca, loira ou de cabelo castanho, pele mais clara, algemada e sentada no chão? Eu pergunto a você. Temos que parar pra refletir. Você já visualizou essa cena?

Não consigo visualizar isso acontecendo.

Pois é. Mas com a imagem de uma mulher negra nessa situação, as pessoas conseguem visualizar. Uma mulher negra reivindicando seu direito de trabalhar e, mesmo assim, sendo algemada.

Por que a senhora decidiu resistir e permanecer na sala de audiência, mesmo sob ameaças de que iriam chamar a polícia?

Eu tenho direito a ler a peça. Isso está na lei. Não estava pedindo um favor, só queria que a lei fosse cumprida.

E quando a polícia entrou e te arrastou, o que a senhora pensou?

Aí caiu a ficha de que, realmente, eu estava sofrendo racismo. Mas desde o momento em que eu sentei na cadeira pra trabalhar, o racismo estava atuante ali. Mas eu abstraí. Não posso levar em conta, se não eu não trabalho.

Por que a senhora sentiu isso desde o começo?

A juíza leiga perguntou se [eu e a cliente] éramos irmãs, talvez pelo fato de nós duas sermos negras. Minha cliente teve de falar ‘olha, ela é minha advogada’. Eu tentei abstrair porque preciso trabalhar, mas, a partir do momento em que me colocaram no chão e eu fui algemada, a ficha caiu totalmente. Era racismo.

A senhora acredita que vivemos um momento de desrespeito ao Estado de Direito no nosso Judiciário? Ou o seu caso foi isolado?

Temos que refletir. O que aconteceu indignou muita gente. Eu acho que a repercussão está sendo boa porque todo dia acontece isso. Todo santo dia. Trabalhar como advogado no Brasil é difícil. Não é romântico, é uma luta. É arrastar sapato, é ter essa luta de brigar pelos direitos, para ser cumprida a lei. Tem locais em que parece até que existe um novo código, um código próprio do juiz. A gente estuda na faculdade uma lei, sai de lá formado com embasamento numa Constituição. Aí, quando saímos de lá e vamos atuar de fato, eles têm um código próprio deles. O que você viu ontem não está no que eu aprendi – mas está sendo aplicado.

Por que isso acontece?

Porque eles acham que podem agir dessa forma já que tem muita gente que não fala nada. Não reivindicam o correto. Eu só queria o cumprimento da lei. Não tem como questionar político, não tem como questionar ninguém se não exigimos nossos direitos. A Lava Jato, por exemplo, é necessária. Isso é fato. Porque há muito dinheiro envolvido que poderia estar sendo aplicado na educação, na saúde etc. Eu moro na Baixada Fluminense e vejo o que falta. O que tinha na Lava Jato e conseguiram repatriar é importante. Não tem que falar em ‘mimimi’  de fulano que está preso e que isso está errado. Eu acredito no Direito. Fulano foi investigado? Foi. Teve julgamento? Teve. Foi condenado? Foi. Foi cerceada  a defesa, o procedimento foi correto? Então, não tem muito o que falar.

Mas a senhora enxerga que há alguns casos de cerceamento de defesa mesmo em ações como essa, que podem ser ainda mais frequentes no dia a dia do ‘cidadão comum’?

Também, claro. Mas aí cabe ao advogado pleitear seu direito, tentar recorrer, assim como eu fiz. Eu penso dessa forma. Vivemos um momento importante no país por toda essa questão da corrupção. É um ranço que a gente carrega historicamente, como o racismo. A lei está aí para ser aplicada, tem que ser respeitada.

Quais os próximos passos contra a juíza e os policiais?

Como advogada, eu tenho que me reportar à OAB. Toda vez que uma prerrogativa minha é violada, eu me reporto a ela. Hoje, estou no Rio de Janeiro porque vim me reportar à OAB, que analisou e vai tomar as providências cabíveis. Me sinto amparada nesse caso.

O seu caso gerou uma mobilização muito grande na internet. Como a senhora recebeu isso?

Eu acho que é um momento para refletirmos. Você achou legal a cena?

De forma alguma.

Pois é. É pra refletirmos. Eu estava trabalhando e, mesmo se eu não estivesse, eu deveria ter sido tratada daquela forma? Eu sou formada, eu estudei, eu estava trabalhando, defendendo um direito e fui algemada. Na ditadura, vivemos muito isso. Mas não estamos em ditadura agora. Temos que refletir no debate, sem ofensas, discutir em sociedade. Vocês querem isso de novo? Eu não quero. E não quero isso pra nenhuma outra colega, advogada e negra.

A senhora vislumbra um cenário melhor para o Judiciário?

Isso ainda vai acontecer, e acontece, todo dia. Eu fiz esse ato, eu resisti porque acho que alguém pode criar coragem e fazer a mesma coisa quando também for afrontado. Se está vendo algo que não está certo, tem que questionar.

Tendo em vista toda essa mobilização, o que a senhora diria para trabalhadoras que sofrem com problemas parecidos?

É lutar. Não adianta. É tentar não se abater a cada pedra que jogam. É dolorido? Muito. Mas temos que continuar lutando porque, em algum momento, irão te escutar. Pessoas também ficarão constrangidas e farão algo a respeito. Queriam me calar, mas não conseguiram.

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Postagem revista e atualizada às 11:50hs de 19.09.2018.

 

Um comentário

  1. O racismo é um vício social abominável. Mas não é um sentimento que brota de repente, da noite para o dia. Ninguém nasce racista. O racismo, como todas as demais formas de preconceito, é produto de um aprendizado que tem suas raízes, muitas vezes, no seio da própria família ou no meio social no qual se insere o racista.

    De acordo com a “ONU Mulheres Brasil” (entidade das Nações Unidas para o Empoderamento da Mulher), “TODO ANO CERCA DE 23 MIL NEGROS SÃO ASSASSINADAS NO BRASIL. SÃO 63 POR DIA. UM A CADA 23 MINUTOS.”

    https://nacoesunidas.org/onu-mulheres-chama-de-escandalo-morte-de-23-mil-jovens-negros-por-ano-no-brasil

    Ou seja: um verdadeiro expurgo da raça negra ocorre todo ano em nosso país, e esse extermínio racial, que parece natural aos olhos de muitos, tem sido infelizmente prática comum no mundo inteiro.

    As ofensas preconceituosas e desprezíveis contra negros que se vê todos os dias, sobretudo nas redes sociais, são próprias de pessoas frustradas e impotentes, de almas pequenas, que para se afirmarem como homens ou mulheres procuram transferir para outrem seus próprios fracassos, defeitos e frustrações.

    Os que alimentam essa insana ilusão de superioridade racial sobre os negros deveriam, antes de tudo, saber que somos todos produto de semelhante genética e filhos de um mesmo Deus, e neste sentido, não podemos negar que somos todos irmãos.

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