De sombras, perplexidades e resistência…

por Sulamita Esteliam

Terminei de ler, neste domingo, o livro do queridíssimo Nilmário Miranda: Histórias que Vivi na História, publicado pela Geração Editorial. O título define o enredo autobiográfico, tecido pelos acontecimentos históricos que entrelaçam a vida do autor.

Confesso que senti uma tristeza imensa ao constatar, também através de seu relato, o quanto andamos de marcha-ré. O quanto este amado Brasil é açoitado pelo egoísmo e pela ganância de suas elites predadoras, mídia venal como cavalo de batalha.

E nós que mal chegamos perto de resgatar a tremenda dívida social que este país tem com seu povo… Essa gente majoritariamente pobre, que já viveu de esperança e chegou a acreditar que havia chegado o dia de vir a ser e a ter tudo o que é seu por direito.

O golpe parlamentar-jurídico-midiático, ensaiado desde 2005- com o dito “mensalão” que não houve a não ser na narrativa de quem o gestou e engoliu -, derrubou a presidenta Dilma Rousseff. Deflagrou-se aí, a marcha para o atraso – acelerado e inclemente.

Vivemos, desde então, um pesadelo recorrente. Estupro coletivo e cotidiano. Nenhum direito garantido, a não ser o de espernear. Todos os preconceitos e violências liberados.

O primeiro mandatário da nação puxa o cordão da barbárie, e ostenta a estultice, a ignorância, com o orgulho dos irresponsáveis.

Nordestinos, mulheres, negros, indígenas, pobres, homossexuais e toda a comunidade LGBTI. Jornalistas, ambientalistas, socialistas, comunistas, sindicalistas, ativistas de qualquer natureza.

Só as milícias digitais ou físicas, tão escatológicas e truculentas quanto o chefe e a turba que o cerca, são bem-vindas e estimuladas.

Nada que surpreenda, posto que ele nada faz que não tenha apregoado antes e durante a campanha. Sua eleição, hoje se confirma, por meios político-judiciais e digitais, hackeou a vontade popular.

Em certa medida, a nossa apatia ante aos desmandos e o menosprezo institucional mostra muito do que somos.

As instituições, ora as instituições, seguem impolutas onde sempre estiveram, de costas para o povo.

O Brasil ao deus dará. E se Deus não dar…!?

Comecei a segunda-feira lendo um artigo do professor Aldo Fornazieri, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Ele põe o dedo na ferida quando aponta a fragilidade das esquerdas, PT especialmente, em lidar com o ataque cerrado da direita articulada.

No entanto, se esquece ou se exime de apontar caminhos. Talvez porque ele próprio esteja meio sem direção. Embora, como bem lembra um amigo jornalista das lides políticas, seja um “intelectual orgânico”, e orientar seja seu mister.

Todavia, pondera meu sempre ponderado maridão, “quem, de bom senso e bons propósitos, não está desnorteado…!?”

Ou como diz o mesmo amigo jornalista, com ênfase peculiar: “estamos todos na mesma escuridão e ninguém sabe onde está a porra da lanterna”.

Note que nos comentários do artigo na página do GGN, Paulo de Tarso, que acredito seja um advogado blogueiro do Sul, questiona na mesma direção. Transcrevo (com correções na digitação), pois sintomático e didático:

“Não é o primeiro artigo do Aldo a atacar as esquerda, mas está nos devendo a fórmula mágica para esta famosa mobilização. Apontar falhas na condução dos movimentos populares não é difícil , basta observar a sociedade. Mas ele tem q ir mais além, como cientista político deveria nos mostrar que classe trabalhadora é esta que vê seus direitos definhar e não se move, que classe trabalhadora é esta que demitida ou em vias de ser, apoia este governo que só impõe maldades, qual a linguagem e que novas organizações deverão ser criadas para estabelecer contato com os pobres de periferia. Como combater as igrejas evangélicas que agem com seu assistencialismo de dominação nas periferias das grandes cidades. Precisamos de mais que apenas críticas ao PT, precisamos de uma análise marxista da nossa realidade e do capitalismo em crise. Precisamos de esperança vermelha pois a branca só servirá para limpar o sangue que que já vemos molhar as terras do campo e logo molhará os asfaltos das cidades.— Paulo de Tarso “

Já passamos por algo semelhante, ou pelo menos vivemos no mesmo estado de perplexidade, para dizer o mínimo. Em 1989, 1994, 1998… 

Não era prerrogativa nossa – como não o é, agora. O mundo estava, e segue, em pandarecos, em mutação e rotação à velocidade da luz. É impossível apreendê-lo a olho nu.

Há um livro muito interessante sobre chamado “A Época das Perplexidades”, Vozes/1996. Fala exatamente disso. Resgatei-o da estante hoje para reler; vai furar a fila.

O autor, outro querido, René Armand Dreifus, historiador e cientista político uruguaio, apesar do nome, já não está entre nós, desde 2003. Viveu um tempo em Belo Horizonte, migrou para o Rio de Janeiro, onde nos reencontramos a última vez, em 1999, quando comprei o livro. 

Atravessamos o rubicão, galgamos a autoestima, a soberania de país potente e incomodamos. A casa-grande sempre reage quando o povo assume o protagonismo. Assim como o imperialismo ruge quando os periféricos assomam soberania.

Pagam de superiores, mas são vassalos do complexo de vira-latas, os nossos e os deles. A ganância não tem pátria.

Digo, sempre, que o que é deles está guardado. Pode demorar, mas o dia há de chegar.

Quanto a nós, sobrevivemos. Renascemos. Sobreviveremos.

Bom relembrar que Nilmário Miranda foi o primeiro ministro dos Direitos Humanos do Brasil, nos primeiros dois anos do governo Lula. Deixou o governo central para concorrer ao governo de Minas, como bom soldado. Perdeu duas eleições seguidas para Aécio Neves, o moleque que ateou fogo no golpismo adormecido da plutocracia branca e seus gerdames de plantão.

Também foi o primeiro secretário de Direitos Humanos, Participação e Cidadania de Minas Gerais, no governo de Fernando Pimentel. É de sua lavra a criação da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal.

Presidiu o PT mineiro, estadual e municipal, a Fundação Perseu Abramo, foi deputado estadual por dois mandatos e federal por três vezes – e meia, pois, suplente, assumiu a meio caminho em 2013.

Faz 72 anos dia 11 de agosto. Sua vida tem sido combater o arbítrio. Foi ativista contra a ditadura de 1964, viveu na clandestinidade durante o terror do AI-5, foi preso político torturado.

Tenho muito respeito pelo trabalho de Nilmário Miranda, de quem sou amiga pessoal, fomos contemporâneos na Fafich/UFMG, quando livrou-se da prisão política.

Admiro a cumplicidade e a dedicação de Stael, professora da UFMG durante vários anos, militante desde a juventude, sua companheira há mais de 40. Juntos construíram uma família linda e amorosa. Daquelas de dar inveja boa.

Ganhei o livro de presente da amiga-irmã Eneida, com dedicatória que me emocionou quando recebi. Foi no ano passado, e só agora pude ler. Lá pela página 186, topo com a menção honrosa do meu nome e do meu trabalho, o que a torna ainda mais especial.

Estive assessora de Imprensa e chefe de Gabinete de Nilmário deputado na Câmara federal, em 1991 e 1992. Foi um convite que me surpreendeu, uma oportunidade generosa de espaço profissional.

Acabara de chegar à capital federal em busca de novos ares, vivendo de freela e trabalho temporário, com a prole distante, três a essa altura. O emprego me possibilitou trazê-la para junto de mim.

Uma experiência única, agregadora de conhecimento da vivência política, de humanidade e perspectivas, que me projetou para novos vôos e possibilidades.

Inclusive o primeiro livro, Estação Ferrugem, Vozes/1998, ganhou corpo nessa convivência e travessia pelos corredores do Congresso. Nilmário militou na região operária de Belo Horizonte-Contagem.

A resistência à ditadura é parte da história dos dois livros – meu, que é romance-reportagem, e, agora, o dele, testemunho escrito na primeira pessoa. É seu quinto livro.

Nos encontramos em Belo Horizonte, em abril, na minha estada para lançar meu livro Em Nome da Filha, Viseu/2018, que trata de relacionamento abusivo, feminicídio e luta por justiça. Ele me disse que mandou imprimir 3 mil exemplares do seu livro, e vendeu praticamente tudo nas dezenas de cidades que percorreu para divulgar a obra.

Estava numa dessas viagens, e por isso não foi ao meu lançamento. Quando estive com ele, numa manifestação do Coletivo Alvorada por Lula Livre, na Praça do Papa, não tinha mais nem um exemplar da centena e meia que levei para Beagá.

É assim que a banda toca, e a gente dança conforme a música.

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