
por Sulamita Esteliam
Escrevi no Twitter, dia desses, à guisa de recado para minha gente próxima, que junto com meu celular, bugado desde a terça gorda de Carnaval, meu cérebro bloqueou. Impossível traduzir minhas emoções e pensamentos em letras diante de tanta notícia ruim.
Francamente, a quaresma começou de ponta-cabeça! Ainda bem que tive um Carnaval desintoxicante, o suficiente para me desligar sem culpas.
Alguém dirá más notícias impregnam o DNA deste país desde a violação da nossa democracia engatinhante com a derrubada da presidenta Dilma, a primeira mulher a comandar este Brasil. E tem toda razão.
Todo o resto é consequência. Mas “o que importa é que tiramos o PT”, ainda há que repita, talvez em vã tentativa de convencer-se de que escolheu seguir a manada.
Bom re-começar assim, lembrando o que não podemos esquecer jamais. Pois digo que minha memória é de elefante.
E já que entramos em março, que é o mês em que destacamos a luta da mulher pelo direito de ser mulher livre e soberana sobre nossa própria condição de sermos Mulher – plena de direitos sobre nossas vidas.
Há um livro indispensável para quem queira relembrar o que se passou em nossa história recente, e vislumbrar como a resistência ao caos pode vislumbrar horizontes: O Colapso da Democracia no Brasil – da Constituição ao Golpe de 2016, Expressão Popular/Fundação Rosa Luxemburgo, do sociólogo e cientista político, Luis Felipe Miguel, professor do ICP da Universidade de Brasília.
Terminei de ler no segundo dia do ano, mas aguardei a oportunidade de comentar. É uma boa análise, sem contaminação da irritante dor de cotovelo e do indisfarçável ressentimento que costumam permear as avaliações, sobretudo das esquerdas, que envolvem a política e os governos petistas.
Desconectada, passei o resto da semana pós-folia mergulhada em outro livro – o terceiro do ano, fora o de Luis Felipe Miguel: As Aventuras de um Ariano Taurino, crônicas de Bernardo Carvalho, Outubro Edições, Brasília-DF, 2019; e No Silêncio das Montanhas: sonho, aventura e opressão no Distrito Diamantino, de Terezinha de Jesus Costa Neves e Maria José de Figueiredo Vieira, UFVJM, Diamantina-MG, 2019.
O da vez chama-se Triologia Suja de Havana, do jornalista e poeta, Pedro Juan Gutierrez. É sua primeira obra em prosa. Uma ficção, com narrativa jornalística, em torno da crise econômica avassaladora instaurada em Cuba nos anos 90. Companhia das Letras, 1999 – 358 páginas na versão brasileira de José Rubens Siqueira.
Eu diria que é desconcertante. A mais grosseira, talvez não…, melhor, escrachada tradução pornográfica, em seu sentido real e figurado: sexo explícito do princípio ao fim, miséria-fome, miséria humana em todos os seus vícios; inclusive o machismo e o racismo monstruosos.
Visceral. Despida de qualquer pudor e mínima simpatia pelo regime instalado e cínico desencanto com a Revolução de 1959. Mais do que a denúncia da crueldade do bloqueio econômico criminoso imposto pelos Estados Unidos sobre a vida do povo cubano, que permeia toda a narrativa.
Registro: na contramão de tudo que vi de perto, e me impressionou sobremaneira, quando estive em Havana na virada do ano de 2006 e na primeira semana de 2007. Havia, sim, muita pobreza, mas o povo é altivo e alegre, transpira dignidade e empatia, e a cidade é linda e estava bem-cuidada.
Praticamente não vi pedintes, menos ainda de comida. As abordagens,quando nos identificavam brasileiros, eram para saudar o Brasil, sua gente e suas coisas: pedir sandálias de marca famosa, camisa da seleção, coisas do tipo. E, sim, perguntar “quien se queda com Maria do Carmo”(personagem da novela global Senhora do Destino).
Lembro-me, por exemplo, que fomos assistir a uma apresentação do Balé de Cuba no Teatro Nacional. Impressionou-me a simplicidade dos figurinos, inversamente proporcional à excelência da arte.
Impossível não fazer um paralelo com o que acontece no Brasil pós-golpe de 2016, especialmente na era capiroto miliciano no laranjal.
Não há elegância possível na miséria, na ignorância e muito menos na barbárie. A saída é não se deixar engolir pela decadência material e moral.
Cultura e arte na veia são bons antídotos.