por Sulamita Esteliam
Quem escreve acaba perdendo o controle sobre o conteúdo da mensagem, nem sempre interpretada com a ideia-força que a gerou.
O texto que transcrevo abaixo é do compositor e cantor e escritor mineiro, Márcio Borges, publicado em seu perfil no Facebook. Sim, ele mesmo, o Márcio Borges do Clube da Esquina, de Santa Tereza, a Santê de Beagá.
É um reflexão sobre esses tempos, a partir de outros tempos de onde ele vem, de onde viemos e para aonde iremos, se é que iremos.
Recebi num grupo amplo de que participo, postado por outro mineiro e não menos famoso, Pedro Paulo Cava, diretor e produtor de teatro, também professor, homem da cultura. Cava agregou um comentário afetuoso, que printei e compartilho:
As palavras de Borges, para mim uma viagem boa, de quem não deixa a vida e os acontecimentos passarem ao largo, tiveram ampla repercussão, naturalmente.
Mas soaram melancólicas aos olhos de quem o conhece e admira. Ao ponto de o autor, de seu refúgio “na roça”, gravar um vídeo para provar que está bem.
“Não estou triste, estou bem. Estou compondo, escrevendo um novo livro, fazendo minhas fotos. Fiz reflexões filosóficas sobre esses tempos tristes que estamos vivendo. Mas eu não estou triste, estou feliz como sempre fui.”
Isso de conseguir separar a própria essência do todo, sem deixar de ser solidário coletivamente, é também uma arte. Salve, Márcio Borges!
Transcrevo o texto, a qual me permiti uma separação mais amiúde de parágrafos para facilitar a leitura. O título da postagem recupera o verso de uma canção dele, com o irmão Lô e Milton Nascimento/Bituca (incluo ao pé), “Clube da Esquina II”. Frase-verso, que se tornou título do seu livro sobre o já lendário Clube da Esquina, publicado em 1996:
por Márcio Borges – no Facebook.
Há 54 anos, eu pensei que pudesse mudar tudo que eu via de errado no mundo com a “revolução “. Entendia por essa palavra sinistra, a instituição da utopia, do mundo perfeito de paz e prosperidade, das pessoas alimentadas sadias e felizes, da plena fartura para todos, dó ócio criativo, da Arte vigorando, teatros, cinemas, praças e pratos cheios. Puxa vida! eram tão bons sonhos.
Eu hoje sonho e nem lembro. Mas ainda sei que sonhei. Até hoje é isso: Minhas palavras e sonhos vivem mesmo é na boca dos outros. Minha vida foi isso o tempo inteiro. Eu colocando palavras e sonhos na boca dos outros. Hoje elas voaram pra muito longe de mim, não me pertencem mais. Ganharam donos, viraram propriedade privada de outros.
Mas eu não as criei por querer. Criei por precisão. Criei para poder. Para poder vencer, primeiro a pobreza. Depois a dureza e a tristeza. Das almas. Dos corpos bêbados.
378 canções gravadas depois da primeira, ainda estou aqui fazendo a mesma coisa, colocando palavras e sonhos na boca dos outros. Ainda não atingi a maestria – e não menciono isso puxando elogios – ” ah, atingiu sim…” Não atingi mesmo. Minhas letras são meio toscas, porque eu mesmo sou meio tosco. Cresci na beira do rio Arrudas, um esgoto a céu aberto. Até nadar naquela porcaria eu nadei. Peguei xistose, tênia, giardia e outros bichinhos que esqueci o nome, naquelas brincadeiras de menino moleque. Meu coração sempre bateu mais forte pelos malditos deserdados desse chão, pelos deselegantes e maltrapilhos, pelas putas e seus filhos.
Meus versos vindos dessas fontes verdadeiras jamais poderiam ser apenas bonitos, elegantes e bem construídos.
Eu não sou filho de classe média e meu acesso ao “bom-gosto” foi uma trip radical. Aquele pedaço de Belo Horizonte que ajudei a tornar famoso, a tal esquina das ruas Paraisópolis com rua Divinópolis, onde eu morava, ficava no fim do mundo – e mesmo assim o povo da rua fez abaixo-assinado pra dona Maricota e Salomão pai se mudassem com seus onze ( doze) filhos maus-elementos, maconheiros, e ainda por cima músicos. Minha familia, brava, resistente, está lá até hoje. Depois colocaram uma placas de louvores e loas oficiais pros irmãos maconheiros. Por mim dá na mesma.
Há 160’dias eu estou aqui isolado na roça. a compor, meditar, escrever, fotografar lua estrela e passarinho, a conviver com minha mulher e minhas filhas, sentindo falta dos meus filhos homens, dos netos e dos amigos. Amigos que não ligam. Amigos impressos nas lendas. A mente apaga tudo. A mente constantemente mente. Abundantemente.
Eu aqui e o tempo passando. Ontem foi domingo, hoje já é sexta. Amanhã, quarta-feira de novo. Eu quero ver onde isso acaba. A live de hoje foi ontem. Amanhã ficou pra agora. O tempo desencontrado, o ser embaralhado. Vejo de longe a insanidade dos hiper-confiantes sempre sorridentes, que tocam seus negócios, vendem seus produtos na certeza de um Amanhã com A maiúsculo que jamais lhes faltará. Os “jovens” enrugados e senis. Os imortais da impermanência, os iludidos-mores. Sonhos cheios de bolor.
Estou cheio dessa gente sorridente sempre, esses sorrisos de internet. Apesar de tudo, acho que um dia, depois dessas pesadas purgações que se iniciam, talvez o dia dos filhos dos meus netos, brote e vigore uma Nova Humanidade, bem diferente dessa que está acabando. Porque, pensando bem, ninguém merece esta falta de lógica, esse voo sombrio da ignorância.
O Homo Sapiens é genial, seguiu à risca a ordem dada pela mãe natureza, que é dadivosa,mas não bondosa. Sobrevivência do mais apto foi o tacape que bateu mais forte e a flecha que voou mais longe e mais ligeira. Também a da equipe mais organizada. A união fez a força. A força criou mais inteligência, que dominou não só o fogo, como criou com as mãos temperaturas mais altas que a do Sol. Que manda sua voz e sua imagem para os confins do espaço sem sair do lugar. Que coleta e espalha informação à velocidade da luz. Inventa para si olhos que vasculham e enxergam até onde o próprio universo vai.
Mas o lobo do homem, que é o homem, estupra crianças. Faz a guerra. Trapaceia. Cria milícias. Mata Marielles. Bate em mulheres. Explode cidades inteiras. Assassina milhões sem despentear o cabelo. Trai as amizades e põe o dinheiro no altar, para lucrar todo santo dia. Eu quero ver onde isso acaba.
A música “Clube da Esquina II” foi gravada por Milton e Lô Borges no lado B do LP Clube da Esquina, em 1972, pela Emi-Odeon.
Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges
Por que se chamava moço
Também se chamava estrada
Viagem de ventania
Nem se lembra se olhou pra trás
Ao primeiro passo, aço, aço…
Por que se chamava homem
Também se chamavam sonhos
E sonhos não envelhecem
Em meio a tantos gases lacrimogênios
Ficam calmos, calmos…
E lá se vai mais um dia
E basta contar compasso
E basta contar consigo
Que a chama não tem pavio,
De tudo se faz canção
E o coração na curva de um rio, rio…
E o Rio de asfalto e gente
Entorna pelas ladeiras
Entope o meio fio,
Esquina mais de um milhão
Quero ver então a gente, gente, gente.