por Sulamita Esteliam
“De março de 71 a abril de 79 foram oito anos, 43 dias e 19 horas de prisão e poesia, entre a Casa de Detenção do Recife e a Penitenciária Professor Barreto Campelo, em Itamaracá.”
Um testemunho do ex-preso político, Marcelo Mário de Melo, jornalista, escritor e poeta pernambucano de Caruaru, radicado no Recife, um amigo querido, que jamais perde a verve do deboche e do humor.
Memória viva dos desmandos do golpe civil-militar e empresarial de 1964, deflagrado em 31 de março, a partir de Juiz de Fora e da capital mineira. Envia aos amigos pelo zap-zap e também os publica em seu perfil no Facebook.
Um dos textos descreve os dois acontecimentos no Recife, dia 1º de abril, que podem ser definidos como “crueldade”:
“Os dois destaques cruéis do dia primeiro.de abril de 1964, no Recife, foram o desfile sádico do sexagenário comunista Gregório Bezerra nas ruas de Casa Forte, ensanguentado e arrastado por uma corda amarrada ao pescoço, e o metralhamento de uma passeata de estudantes armados com o hino nacional e escudados na bandeira brasileira, sendo mortos Jonas Barros, jovem comunista do Ginásio Pernambucano, e Ivan Aguiar, estudante comunista de Palmares, aprovado no vestibular para a Escola de Engenharia.”
Escreveu e publicou o livro Entre Teias e Tocaias, Perfil Parlamentar de David Capistrano, Edição da Assembleia Legislativa de Pernambuco.
Tenho o livro, dedicado: “À Sulamita, pedaços da nossa História, com muito gosto de fel, pedindo roteiros que rimem com mel”. Estivemos muito perto de alcançar o propósito, é preciso reconhecer. Estávamos em 2002.


No livro, Marcelo Melo relata que Capistrano queria resistir ao golpe e pediu armas a Miguel Arraes. Mas o governador não via condições objetivas para resistir. Nas palavras de Arraes:
“David tinha participado de outras lutas. Achava que uma resistência armada devia se dar. Eu fiz ver a ele que tínhamos de medir as coisas de maneira mais geral, e que nenhuma dessas possibilidades poderia ser descartado, mas não poderíamos agir sem uma coordenação qualquer fora do estado.
Eu tinha sido encarregado por Jango de fazer um balanço rápido da situação dos outros estados, para uma contraposição ao que estava ocorrendo no Sul. Somente três governadores apoiavam o governo: eu, Seixas Dória e Bagder da Silveira.
Também não temos preparação, numa situação em que forças federais estaduais não eram solidários ao governo. Algumas medidas haviam sido tomadas mas havia condicionamento para um tipo de ação. Tínhamos pouca gente na polícia. E o palácio do governo era indefensável, pois era apto para batalhas do século 17. Para resistir, tínhamos de sair. E para sair, tínhamos que declarar, e já sair numa posição de força.
Falei com Jango entre o dia 31 de março e o primeiro de abril e vi que ele não resistiria. Desde a crise da legalidade, com renúncia de Jânio Quadros, em 1961, Jango tinha optado por soluções negociadas.”
O Palácio Campo das Princesas foi cercado e, sob cerco, Arraes gravou um pronunciamento aos pernambucanos. O governador se recusou a negociar com os golpistas, sob “dois argumentos muito simples”, conta Marcelo:
“Primeiro, seu mandato tinha sido dado pelo povo.
Segundo, tinha nove filhos e queria um dia olhar para todos eles nos olhos contando essa história.
Pelópidas Silveira, que a tudo assistiu, saiu do palácio do governo e assumiu o seu posto na Prefeitura do Recife, dizendo: “eu tenho que ser preso na Prefeitura”.
Escolhi outro texto para publicar na íntegra, com autorização do autor. Note que ele consegue falar da tragédia com leveza. Resgata os poetas sequestrados pelo arbítrio, ele inclusive, e que se mantiveram ativos mesmo encarcerados.
1964: GOLPE NA POESIA
por Marcelo Mário de Melo – também no Facebook
Além de antidemocrático, antipopular e antinacional, o golpe civil-militar de 1964 foi também antipoético. No dia primeiro de abril vi tombar na passeata, atingido por tiros de mosquetão, o companheiro Jonas Barros, cantando o hino nacional e escudado na bandeira brasileira.
Jovem militante comunista do Colégio Estadual de Pernambuco, Jonas escrevia poemas de muita sensibilidade e leveza. Também foi fuzilado Ivan Aguiar, comunista de Palmares e aprovado no vestibular para Engenharia. Há indícios de que também foram mortos um homem e uma mulher não identificados.
A bandeira nacional, depois de passar de mão em mão, restou no chão ensanguentada.
Os poetas Ângelo Monteiro e Albérgio Maia de Farias, que tinha 16 anos, foram presos no DOPS. Um dia, Albérgio foi comigo à Galeria de Arte, localizada numa estrutura de cimento construída sobre o Rio Capibaribe, em frente aos Correios. Emocionado, deixou pregado na paredes um poema de homenagem a Jonas – habituê daquele espaço – que começava assim:
“Na galeria de arte/há um banco de saudade/e há gestos de futuro/quebrando a serenidade.”
Para comemorar a libertação de Newton Farias, militante bancário, irmão de Albérgio, foi marcada uma farra secreta nos fundos da venda do Velho Pires, no bairro da Soledade. Entre cervejas, canções e poemas, Rui Alencar sentenciou:
“As noites de sábado dos poetas/alimentam a resistência dos patriotas.”
Estudantes de esquerda faziam o jornal O Secundarista, com boa tiragem e impresso em cores, idealizado e articulado por José Fortuna de Melo, meu irmão, o meu nome constando como secretário, editado por Rômulo Lins, onde publicavam poemas Albérgio Maia de Farias, Ângelo Monteiro, Marcus Accioly, Anamárcia Veinsenher, Luis Carlos Duarte, Rômulo Lins, Diógenes Caldas e outros.
O jornal não pôde mais ser editado e os seus responsáveis e colaboradores que não foram presos tiveram de se esconder da repressão ou calar.
Incorporado às atividades políticas da esquerda, Ângelo Monteiro desenvolvia uma intensa militância estudantil, marcada pela declamação de poemas desse teor:
“E os verdadeiros cristãos/de fé robusta e viril/ com o cano do seu fuzil/farão o sinal da cruz”.
Também fazia longos discursos previamente decorados:
“Como católico, ouço a voz de Sua Santidade o papa. Como revolucionário, ouço a voz de sua Santidade o povo.”
Alberto da Cunha Melo e Jaci Bezerra acompanhavam a esquerda no movimento estudantil. Depois do golpe, Jaci editou e distribuiu no Colégio Estadual de Pernambuco um jornal mimeografado intitulado Letras.
Um subproduto poético publicado no Suplemente Literário do Diário de Pernambuco, em 1965, foi objeto de gozação de Stanislaw Ponte Preta na sua coluna na Última Hora do Rio. Era um longo texto do tenente-coronel Dácio Vassimom, chefe do estado maior do IV Exército, louvando a Cruzada Democrática Feminina com coisas assim:
“Pelas ruas do Recife desfilando/a corja comunista desacata/sem temer uma bala ou um sopapo/a lembrar o que foi Tejucupapo”.
Nas citações que fez, Stanislaw não se referiu a versos: falou em pedaços. Na clandestinidade, de vez em quando eu me lembrava da tirada de Rui Alencar sobre as noites de sábado dos poetas. De março de 71 a abril de 79 foram oito anos, 43 dias e 19 horas de prisão e poesia, entre a Casa de Detenção do Recife e a Penitenciária Professor Bareto Campelo, em Itamaracá.
Perdi nos aparelhos clandestinos e nas fugas um volume datilografado com todos os meus textos. A partir daí, passei a decorá-los.
Também escreviam poemas na prisão, Chico de Assis, Juliano Siqueira (RN) e Cláudio Gurgel (RN) Chico Passeata (CE), Severino Quirino (o Poeta da Fome, de Caruaru), e Antônio Ricardo Braz, cirandeiro de Timbaúba. Recebi livros de Ângelo Monteiro e Luís Carlos Duarte, que ainda conservo.
Minha obra completa de Castro Alves foi apreendida pelo major Siqueira, diretor da penitenciária, junto ao Aprendiz de Crítica, de Joel Pontes. Centenas de livros foram subtraídos dos presos políticos e revendidos em sebos.
Contrabandeamos por partes o Poema Sujo, de Ferrreira Gullar, cuja leitura me fez subir um degrau no 5BX, a tabela de exercícios físicos da Força Aérea Canadense.