por Sulamita Esteliam
Como a maioria das mulheres da minha geração, que foram a luta para criar sua prole, dependi muitos anos do trabalho de outras mulheres para ajudar na lida doméstica, que incluía cuidar das crias quando não estavam na escola. Sou grata a todas elas.
Uma situação incômoda, mas inescapável àquela altura. Embora me relacionasse bem com todas elas, sempre considerei a relação complicada, uma vez que o estritamente profissional se mistura com a intimidade familiar e, não raro, cria laços que não se inscrevem nem se encerram na carteira de trabalho.
Por exemplo, terminei madrinha de três crianças, filhas dessas mulheres que me ajudavam a cuidar do meu bem mais precioso. Os atritos eventuais, também inevitáveis, se afastaram algumas do meu caminho, não impediram que outras se mantivessem por perto.
A última delas ainda hoje me dá como referência para suas candidatas a patroa, passados 15 anos do desvínculo profissional. Não teve substituta. Durante algum tempo, recorri a diaristas, e hoje, faço questão de cuidar eu própria da minha casa. O maridão compartilha bem as tarefas.
Contudo, é a mim ou a ele que ela recorre sempre que se sente burlada ou ameaçada em seus direitos. Tem passado perrengue, a pobre.
Criou três filhos com seu trabalho, nunca teve sorte com marido. E ainda hoje depende da labuta doméstica em casa alheia para sobreviver. E a qualidade de contratadores é cada vez mais reles.
– Sou escrava não, dona Sula. Disse a ela, a senhora está errada, tenho meus direitos – me conta do diálogo com a então patroa, a mais recente, que queria obrigá-la a voltar ao trabalho antes do término da licença médica para tratamento de Covid.
É sério, até isso há gente capaz de fazer. Pior, a mulher é médica e o marido também. Nossa amiga tinha função de babá, pasme! Quando voltou ao trabalho, foi demitida. Recebeu a carteira de volta sem assinatura.
Pois é esse tipo de gente, metida a casa-grande, ruim de trato, que não reconhece direitos de quem não é espelho, que é responsável pelo descarrilamento social deste país.
Só enxergam o próprio umbigo, e não se furta em exercer o papel de capataz, embora se mostre cheirosa e de salto alto para pisar melhor nos “serviçais”, feito capachos.
Leio no Brasil de Fato, dados de levantamento feito pelo Dieese, divulgado neste 27 de abril, Dia Nacional da/o Empregada/o Doméstica/o: 75% dessas pessoas, das quais 92% são mulheres e 65% negras, trabalham sem carteira assinada.
Reflexos da pandemia de Coronavírus, mas não só. O percentual vem crescendo com o desmonte de direitos dos trabalhadores, de modo geral, desde o golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff.
Foi no seu governo, em 2013, passou a vigorar a PEC das Domésticas, que estendeu à categoria todos os benefícios da CLT e enfureceu a classe média.
Em consequência, quem trabalha sem vínculo, ganha menos 40%, em média, que dúvida!. E as pessoas negras menos ainda, 15% a baixo do que recebem as brancas.
Não bastasse, é 23,4% menor o número de gente empregada no setor, três vezes mais do que a redução no quadro geral de ocupações no Brasil.
Significa que cerca de 600 mil trabalhadoras domésticas deixaram de contribuir para a Previdência Social. Eram 2,2 milhões no final de 2019 e passaram a 1,6 milhão no último quatrimestre de 2020.
Como se vê, infelizmente a categoria não tem o que comemorar.
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Fonte requerida:
Brasil de Fato
600 mil empregadas domésticas deixaram de contribuir para a Previdência em 2020