por Sulamita Esteliam
Faz dois anos hoje, 19 de julho, que a gente se encontrou pela última vez. Era seu aniversário e, como de costume, reuniu os amigos no seu bar preferido para celebrar o novo ciclo.
Já há alguns anos juntava outros aniversariantes de julho e também de junho, amigos que você fez quando se mudou para a Iputinga, e conheceu o fiel escudeiro Marinho, que aniversaria no início deste mês.
Você estava feliz, feito pinto no lixo. Aliás, nunca vi outro canceriano gostar tanto de celebrar aniversário e de ganhar presente como você. Parecia menino aguado. Qualquer bobagem lhe deixava exultante: uma caneca, um creme para as mãos, seu instrumento de trabalho, um bolo para cantar parabéns…

Seus filhos e netas estavam presentes e, claro, sua discreta companheira dos últimos anos, poucos, e que me pareciam felizes. E você sorria de um canto a outro da boca ao abrir os pacotes e também ao posar para fotos, sobretudo com seus meninos: “um café, outro leite”.
Era assim que você a eles se referia, vez por outra, quando resolvia abrir o coração e contar suas histórias. Falava de sua infância de menino pobre, criado por mãe. Jamais falou de seu pai.
Contava o porquê de detestar sardinha e macarrão, o arroz com feijão da sua meninice. Também não gostava de bacalhau, que naqueles tempos da infância era “comida de pobre”. E disse porque dispensava bolos, que não os de aniversário: “enjoei, de tanto comer bolo solado”.
Falava de seu avô que cultivava flores para vender, e dava boas risadas: “Ele pintava as rosas brancas de azul-tinta-de-caneta-bic, e fazia o maior sucesso, ainda que desbotassem quando colocadas no jarro com água, conforme o costume”.
Falava da “comadre”, que o ajudou a criar o filho mais velho, e com quem viveu e teve o outro menino, o que lhe deu duas netas.
Abria as mágoas que o levaram a deixar Maria, sua terceira mulher, que não conseguiu cuidar de você como achava que devia, quando teve hepatite. E eu argumentava que ao menos ela havia sido sincera sobre não saber lidar com doença. E você ficava bravo, mas acabava concordando sobre a sinceridade, que não suportara.
Contava das campanhas políticas e sindicais rascantes de que participara, como redator e chargista, na Ecos. Das experiências como publicitário e jornalista, e como cantor na noite do Rio e São Paulo, do trabalho nos grupos de mídia locais.
Rememorava histórias do arco da velha sobre os embates no próprio Sindicato dos Bancários PE. Foi lá que nos conhecemos, no final da década de noventa do século passado, e nos tornamos parceiros imbatíveis e amigos para sempre.
Brigávamos muito, como o fazem os bons amigos. Mas sabíamos que podíamos contar um com o outro no trabalho e no botequim. Você com seu talento no traço e a capacidade quase ilimitada de imaginar projetos e traçar planos, não apenas na Comunicação.
Liba, ou Ehros Tomasini, autografa seu livro O crime dos Vieira de Melo, publicado primeiro em versão digital
Era falante, mas também bom ouvinte. Embarcava, muitas vezes sob protestos, na minha loucura de não parar enquanto não terminasse uma tarefa. Quantas noite viramos fechando jornais e revistas, finalizando materiais de campanhas políticas e sindicais!
Jamais me esqueço de quando fui chamada para botar em circulação o jornal da administração João Paulo, então no PT, na Prefeitura do Recife. Euzinha mesma sugerira no grupo voluntário que debateu o programa de governo; fora relatora do capítulo da Comunicação Própria.
Mas só ao final do primeiro ano de gestão, decidiram colocar em prática a sugestão. Interrompi minhas férias em Beagá para tornar ao Recife, chamada de emergência.
Tivemos duas semanas para elaborar e aprovar o projeto editorial e gráfico, escolher e treinar a equipe, fazer a pauta e botar o primeiro número da edição mensal na rua: 300 mil exemplares encartados em um dos principais diários da cidade.
Coloquei a parceria com você como condição de topar a empreitada. Você e eu tivemos que aprender, na tora, o novo sistema de editoração, compatível com a gráfica do jornal que rodaria o impresso. Tudo junto e misturado.
Dobramos noites seguidas no prédio da Prefeitura, que desconhecia luzes acesas após as 20 horas, e em situações-limite. Na primeira vez, os seguranças foram conferir o que estava acontecendo, e custaram a acreditar que era tão somente trabalho.
Memórias de um tempo a que sou grata.
Não poderíamos saber, mas aquele 19 de julho de 2019, seria seu último aniversário que pudemos celebrar. Cinco meses e nove dias depois, seria minha vez de comemorar idade nova, e apesar do número redondo, o faria em casa, com a família e poucos chegados, que estivessem pela cidade no dia.
Aniversariar entre o Natal e o Reveillon tem esse inconveniente: os amigos sempre têm agenda de viagens ou compromissos familiares.
Chamei-o, e você se entusiasmou com a ideia: “Ôba! Estarei aí com Neide e o Marinho”.
No fim da tarde do sábado, contudo, recebi um recado pelo zap-zap:
“Mulher, não vai dar para mim. Amanheci asmático e tive que ir a um posto nebulizar. Tô chegando em casa agora. Desejo-te um niver bem animado. Fica pro próximo, tá?.”
Uma semana após o reveillon, liguei para saber de você, e me disse que estava bem, mas precisava nebulizar com frequência. Quase um mês depois, 26 de janeiro, soube pelo Marinho que estava internado, havia tido um AVC.
Pedi o telefone e procurei Neide, que me contou pelo zap-zap da alteração anormal de suas taxas, que por conta disso você delirava, e também estava submetido à hemodiálise. Disse também que não havia tido AVC, mas uma isquemia, que provavelmente não deixaria sequelas.
Tudo o que podíamos fazer era aguardar.
E do hospital você só saiu para o funeral. Na tarde do dia 30 de janeiro recebi mensagem da Neide:
“Infelizmente ele nos deixou hoje. O enterro é amanhã às 11 horas, em Santo Amaro.”
E tudo o que Euzinha pude fazer foi cantar para embalar seu sono eterno. Respirei fundo e soltei a voz na Canção da América, dos meus conterrâneos Bituca e Fernando Brant: “Amigo é coisa para se guardar, do lado esquerdo do peito…”
Julio passou o braço na minha cintura para me dar sustentação, e isso certamente fez diferença. O alicerce físico que me faltou quando cantei para minha mãe, 19 anos antes, outra canção gravada por Milton Nascimento, mas que aprendera na voz dela própria, que a sabia de Dolores Duran: A Noite do Meu Bem.
Mas essa força, de cantar em despedidas definitivas, na verdade, vem de dentro e das encruzilhadas da vida. Coisas aprendidas de mãe, que o fazia em cada partida de gente querida. Quem canta, sua dor espanta.
E as pessoas, surpresas no princípio, algumas acabam acompanhando os versos. Foi assim no velório da dona Dirce, e foi assim quando dissemos adeus a você, meu amigo.
Paulo Santos, um dos seus parceiros de cometimentos artísticos estava lá, não cantou, mas vez um gesto de cabeça em aprovação. Marlos Guedes, outro parceiro, cruzou as mãos atrás do corpo e erguia e descia os calcanhares, naquele gesto característico de segurar a emoção.
Maria e a comadre estavam lá, e mudas ficaram. Dei a notícia à Sandra, que não conseguiu ir, mas visitou o túmulo no dia seguinte.
Neide era a própria serenidade, mas era como se alguma coisa estivesse foram da ordem, e certamente era você para nunca mais.
Seus filhos e suas noras também estavam tristes, mas serenos. Erick lembrou sua inventividade inesgotável e fez a prece de despedida. William, que o tratava como “meu amigo”, trouxe a filha mais velha para despedir-se do avô, já na hora final. Só então vi a menina, que acredito tinha seus 11 anos.
E me lembrei de mim mesma, pirralha de pouco menos de cinco anos, na pequena sala lá de casa. Meio anestesiada, entre lágrimas, minha mãe me chamou para dar adeus ao meu pai, e me instruiu a beijar os pés do falecido para que tivesse boa viagem.
Terapia de choque.
Vida, amores, aventuras e morte se entrelaçam nas conversas à mesa do bar, não é amigo? Você com suas histórias, você com os cuidados e depois a perda da sua mãe, em Caruaru. Euzinha com os meus casos infindáveis, onde a dona da foice é presença constante, desde sempre.
No entanto, chegada a sua hora, fui incapaz de escrever a respeito. Levei dez dias para postar algo no Instagram, e só agora traço aqui estas linhas, como forma de resgatar sua presença em nossas vidas.
Sua imaginação fértil passeava das ilustrações de livros infantis, como O Menino Balão, parceria com nossa amiga Fabiana Coelho, a histórias com com forte carga erótica, beirando o pornográfico. Alguns se transformaram em livros digitais e impressos: Crônicas de Mona, O Crime dos Vieira de Melo...
Ia do traço forte e certeiro, presente nas ilustrações de livros, jornais e revistas, aos HQs sobre História de Pernambuco para crianças e adolescentes, em parceria com o amigo Paulos Santos.
Mas, seu HQ sobre a Confederação do Equador ficou rafaeado, sem conseguir publicar: 130 páginas, que é preciso resgatar. Por isso, talvez, em seus últimos anos tenha ficado de mal com o traço.

Mente totalmente despida de falsos pudores. Antecipava nas conversas as centenas de contos, que você escreveria, quase compulsivamente, lá no Recanto das Letras, sob o pseudônimo Ehros Tomasini. Uma tsunami criativa.
Tenho o primeiro, Mona, impresso em caráter experimental. Além de O Tigre e o Leão, de fundo histórico, que li a primeira versão.
Impressionou-me a história dos “tigres”, negros que carregavam os barris de dejetos dos brancos, que escorriam sobre seus corpos, daí o epíteto.
Tenho me lembrado muito de você nos últimos tempos. Por esses dias me pus a pensar por que não fiz uma cópia do arquivo de suas charges e ilustrações ao longo dos nossos 15 anos de trabalho em conjunto? Ficaram lá, no computador do sindicato.
Comigo tenho apenas duas, e uma delas de quando fizemos o jornal da Aneac, já depois que fomos demitidos, com intervalo de, talvez, um ano – Euzinha primeira da lista, após o racha na direção e disputa acirrada nas urnas .
Ponho-me a imaginar a leitura que você faria desses tempos sombrios, de autoritarismo explícito, desmantelo ativo, escárnio militante, fome e abandono e morte aos milhares.
Em um ano e meio, já mais de 540 mil brasileiros e brasileiras colhidos pela pandemia, que levou perto de 1 milhão e meio de vidas mundo afora. Só em Pernambuco, já beiram os 18 mil e meio de pessoas que se foram .
Você escapou de ser levado pela peste, que se mimetiza a cada novo ambiente. Com todas as suas comorbidades, seria um pasto e tanto para o vírus. E teria sofrido muito mais.
Quem já passou pelo Covid conta o quão dolorosa é a experiência. Nas palavras de uma amiga mineira, que está se recuperando: é um coice de mula no cio.
Espero que você tenha tido boa acolhida do outro lado, e que, para o sossego de sua alma, não tenha conhecimento do que acontece por aqui.
Sim, devo lhe dizer que o Urso PédeCana, que Fabiana e Cajá fundaram, homenageou você no derradeiro Carnaval antes da peste se instalar. E devo confessar que Euzinha e Julio não conseguimos alcançar o bloco, mas a camisa com você em ação está bem guardada para quando for possível retomar a folia.
Marinho publicou outro livro: O Vestido Marrom, e me disse que você deu sugestões preciosas. Vez por outra, ele toma uma e liga para mim para chorar sua ausência. Dia desses, me enviou uma coleção de fotos e vídeos com você.
Fico por aqui, pois estiquei demasiado. Prosa represada dá nisso. Muita saudade de você.
Obrigada pela nossa convivência, pela amizade e pelo jeito todo seu de demonstrar afeto, Liba. Você é absolutamente inesquecível, querido para sempre, senhor Eloísio Libório Melo.
Emocionante, Sula.
Depois que saí da direção do sindicato, passei a conhecer melhor esse(s) lado(s) do Libório. Ele gostava de pedir minha opinião sobre conteúdo dos seus escritos.
Claro, nas mesas do Caldo de Boteco.
Maravilha , Sula. Adorei a homenagem. Passei a semana conversando com ele. Beijo.
Não tinha proximidade com o Libório, mas o conhecia do Sindicato e sabia da sua excelente atuação no setor de imprensa. De uma coisa tenho certeza: que ele faz muita falta para aqueles que conviveram com ele. 🙏👏👏👏