por Sulamita Esteliam
Não há tempo demarcado para se falar de e vivenciar Educação e Cultura. Deveria ser hábito cotidiano, como dormir, comer, andar, querer, pensar, sonhar….
Admite-se que a educação formal não seja a panaceia do mundo. Há muitos exemplos de gente sábia que não passou pela escola. São pessoas raras, é preciso admitir – e a contradição é apenas aparente.
Enquanto há centenas, milhares, que se entopem de livros, títulos e diplomas, e pouco sabem da vida. Muitas vezes sequer vislumbram o que fazer com a existência, com livros, títulos e diplomas, independentemente da conjuntura social, econômica e política.
Há gente letrada que não consegue ler o mundo à sua volta. Nem adianta desenhar. E acha que está tudo bem. Gente incapaz de traduzir para o útil, além do ter e haver, o que as palavras e as cátedras e o contexto soletram.
Mal sabe, ou não se importa, que empatia é quase amor. E a vida cobra o descaso, a displicência, o escárnio ou a teimosia, de um jeito ou de outro.
O conhecimento adquirido por quem sabe ouvir, olhar ao redor, para quem aprende a ler o que os olhos e os ouvidos conduzem à cabeça e ao coração, faz toda a diferença no ser.
Como nos ensina Antonieta de Barros, a menina negra, filha de escrava liberta e lavadeira, que se tornou referência na educação e na política:
“Toda ação precisa de um instrumento. O instrumento básico da vida é a instrução. Se educar é aprender a viver, é aprender a pensar. E nessa vida, não se enganem, só vive plenamente o ser que pensa. Os outros se movem, tão somente.”
É dela a criação do Dia do Professor, num tempo em que a linguagem de gênero, muito menos a neutra, inexistia.
Deu-se em 12 de outubro de 1948, em Florianópolis, Santa Catarina, terra-Desterro (era o nome da capital) onde nascera em 11 de julho de 1901.
A data se refere à sanção da primeira lei educacional por Dom Pedro I, em 15 de outubro de 1827. Mas a Lei, que veio do crivo da deputada Antonieta de Barros, só foi nacionalizada 16 anos depois, por João Goulart.
A escola jamais me falou de Antonieta de Barros. Educadora-símbolo, como depois se tornou Paulo Freire, de quem soube apenas na Universidade, referenciado por outros autores. Vivíamos uma ditadura.
Não sou pedagoga, muito menos filósofa. Mas ouso dizer que a filosofia de Paulo Freire dialoga com as ideias de Antonieta de Barros.
A professora barriga-verde é precursora, no tempo e na ação: antecede 20 anos o educador pernambucano, filósofo, criador da Pedagogia Crítica, patrono da educação brasileira e referência mundial no gênero.
Ele também de origem pobre, embora nordestino, também quebrou barreiras e encarou o arbítrio. Fez escola. Era homem e não-negro, foi longevo.
Fato é que ambos lutaram para que a educação baseada na cultura quebrasse o muro da indigência nacional.
Antonieta e Freire só chegaram a mim, menina branca, adolescente pobre e periférica, de forma concreta, com a vivência na militância social e política. Ela, bem mais recentemente.
Brotamos e nos criamos numa sociedade racista, machista, xenófoba, autoritária, é bom não esquecer.
As ideias de Paulo Freire, assim como sua biografia e ação são sobejamente conhecidas. Por isso, fico na referência e me concentro em Antonieta de Barros, que muita gente ainda precisa conhecer.
Primeira mulher a se eleger deputada estadual no Brasil. Primeira deputada mulher do estado de Santa Catarina, de maioria branca, numa assembleia majoritariamente masculina e oligárquica e, claro, branca.
Isso nos anos 30 do século passado. No que foi a primeira eleição em que as mulheres puderam votar e ser votada, oficialmente.
De São Paulo, se elegeu no mesmo ano a médica sufragista Carlota Pereira de Queirós. Antes, a potiguar Luiza Alzira Soriano, filha de político, tornara-se a primeira mulher a conquistar um cargo eletivo na América Latina, e com 60% dos votos: a de prefeita de Lages, onde comandava a fazenda da família.
A ousadia se deu no vácuo da vitória judicial da mineira Mietta Santiago, escritora e advogada: em 1928, reivindicara o direito de votar e ser votada, (artigo 70, da Constituição de 1891) obtendo sentença favorável.
Com direito a poema de Carlos Drummond de Andrade:
“MIETTA SANTIAGO
loura poeta bacharel
Conquista, por sentença de Juiz,/
direito de votar e ser votada,
para vereador, deputado, senador,
e até Presidente da República,
Mulher votando?
Mulher, quem sabe, Chefe da Nação?
O escândalo abafa a Mantiqueira,
faz tremerem os trilhos da Central/
e acende no Bairro dos Funcionários,
melhor: na cidade inteira funcionária,
a suspeita de que Minas endoidece,
já endoideceu: o mundo acaba.”
Note-se que o direito ao voto feminino só foi conquistado em 1932, por conta da ação das mulheres sufragistas como Mietta, Luiza Alzira, Antonieta e Carlota (fotos nesta ordem, capturadas na rede).
Antonieta rompeu paradigmas para além do gênero, na verdade: ao contrário das demais, era preta e pobre, sem linhagem política.
Começou a ser alfabetizada aos 5 anos por uma professora conhecida da mãe, que tinha escola particular. Só depois foi para a escola regular, pública, com interrupções, e chegou ao Magistério já aos 17 anos.
Antes mesmo de concluir o Normal, fundou uma escola para alfabetizar pessoas pobres e pretas, como ela: Curso Particular Antonieta de Barros. Oficializado em 1922, e que funcionou até 1964, 12 anos após seu encantamento, em março de 1952. Sua irmã, Leonor de Barros assumiu o projeto.
Sua batalha pelo direito à educação, sobretudo para negros e mulheres, foi o motor do seu ativismo, na ação e na escrita.
Escrevia sob o pseudônimo Maria da Ilha. Publicava em diferentes periódicos catarinenses, e usou o poder da pena também para defender a paz e reivindicar uma sociedade mais igualitária no Brasil.
Os artigos publicados no jornal República foram reunidos e editados, em 1937, no livro Farrapos de Ideias. Só encontrei disponível a edição cuja capa reproduzo, à venda numa livraria de Porto Alegre, via internet.
Reprodução
Os trechos que cito a seguir estão em estudos acadêmicos que localizei via rede.
O sistema da educação falhava quando limitava seus esforços à alfabetização sem oferecer possibilidades de avanço, sobretudo às mulheres e classes menos favorecidas, apontava.
Dizia mais: a independência moral e educadora somente seria alcançada via cultura.
“Não se pode negar, Santa Catarina tem progredido quanto ao ensino superior. […] Há, contudo, uma grande lacuna na matéria de ensino: a falta dum ginásio, onde a Mulher possa conquistar os preparatórios, bilhete de ingresso para os estudos superiores. O elemento feminino vê, assim, fechados diante de si, todos os grandes horizontes. […] O máximo de ilustração oficial, proporcionado às mulheres em Santa Catarina, está restrito a um curso de normalistas nada mais. (12/07/1932).”
A postura crítica a colocou em rota de colisão com a oligarquia branca local e alvo de ataques racistas. Do tipo desferido por um colega da Assembleia, que acusou de em seus escritos praticar “intrigas de senzala”. Não ficou sem resposta:
“[…] Não é do nosso feitio essa modalidade de comportamento. Somos leais. Leal e agradecida. Sempre fomos. E é um característico dos negros. Fizemos do Magistério o nosso caminho, e agimos sempre respeitando a professora que não morreu em nós, ainda, graças a Deus. Como, pois, a intriga? Compreendemos que a delicada sensibilidade do nobre Deputado tenha sofrido diante daquela frase. Sua Excelência, para a felicidade de todos quantos são arianos – apesar de portador de um diploma de jornalista – não milita no ensino público. Dizemos felicidade porque, à sua Excelência, falta uma das qualidades de professor: não distinguir raças, nem castas, nem classes… (O Estado, 06/05/1951).”
Maria da Ilha considerava a guerra “o fruto mais ingrato do egoísmo”. Não carregam nenhum benefício para a coletividade, ao contrário, se dão “em proveito de alguns e para a ruína das massas”.
“Dentro do sonho lindo de fraternidade que se envolve os corações idealistas, esbatendo fronteiras e desconhecendo oceanos, para o abraço universal, há, de quando em vez, hiatos tremendos, em que os homens se revelam. Só então é que as massas sentem e compreendem o valor e a fecundidade da paz, que é progresso, sossêgo (sic ) espiritual; da paz, que é evolução e conquista; da paz que é trabalho e fartura; da paz que é glória e bênção. (BARROS, 1937, p. 31.)

Quem quiser saber mais sobre a autora, porém, tenho boa noticia: em maio deste ano foi lançada a biografia “Antonieta de Barros: professora, escritora, jornalista, primeira deputada catarinense e negra do Brasil“, de Jeruse Romão, também uma autora negra e ativista.
O livro tem sete capítulos e a espinha dorsal é a vida de Antonieta Barros, contextualizada, entretanto, com a História do país e do seu estado natal. Há um capítulo exclusivo sobre a vida dos negros em Santa Catarina no período de 1920 a 1940.
Fecho com, citação que encontrei no Blog da Jô Capoeira:
“Há criaturas que deixam o aroma de sua passagem, como os turíbulos, onde se queimam essências aromáticas”.
Parece ser o caso de Antonieta de Barros, a Maria da Ilha.
*******
Fontes requisitadas
Literafro/Letras-UFMG
Antonieta de Barros, dados biográficos
Revista Interfaces/Unicentro
“Farrapos de Ideias: Maria da Ilha”
El País Brasil
Antonieta de Barros, a parlamentar negra pioneira que criou o Dia do Professor
Catarinas.Info
O livro humaniza e desconstrói a Antonieta de Barros, conta a autora
Câmara dos Deputados
Querida Sula, Tal Mineira
O que fizeram com Antonieta chama-se apagamento.
Mulheres, seus escritos, ideias, pesquisas não são citadas e nem indicadas nas bibliografias.
Mulheres pretas são duplamente apagadas.
Eu, mulher preta, apaguei o nome da única professora negra que tive na faculdade. A professora de Semiologia.
Hoje, aprendi a buscar, ler, citar e indicar a leitura dessas intelectuais.
Ela são heroínas. Enfrentaram sozinhas a solidão intelectual. Enfrentaram o racismo, a misoginia, o machismo e toda forma de preconceito que as lançaram no limbo.
Mas, a história produzida por mãos que tecem pontos e dessatam nós pescaram essas bravas e as trouxeram para junto de nós.
Nós que nos importamos e queremos conhecê-las. Aptender com elas. Reverenciá-las. Divulgá-las.
Isso mesmo, querida irmã Eneida. Temos que trazer à luz o brilho que elas traduzem com o tecer do nosso lugar no mundo. Obrigada pelo comentário, pela atenção de sempre.
Que belo texto. Agradecida por te conhecer. Receba meu abraço. Jeruse Romão
É uma honra tê-la por aqui, Jeruse. Retribuo o abraço, com carinho desta A Tal Mineira.