por Sulamita Esteliam
Esta manhã, mal o dia clareou, fui acordada por minha irmã Dora, alma-gêmea por escolha desde tenra infância. Um abraço estranho, medroso, cobrado por ela, que mais parecia uma boneca, que poderia se desmanchar ao menor toque.
– Não vai me abraçar!?
– Claro! – respondi com a voz em falsete, um travo de dor na garganta.
Sim, era Dora, com cheiro de água fresca, mas extremamente pálida, e não havia por que estranhar. Afinal, ela está encantada há mais de duas décadas.
Vestia um terninho rosa-pêssego, cabelos longos escuros, como no original, mas sem o brilho da juventude. Observei, só para mim, que na maturidade ela descolarira os cabelos, que trazia repicados à altura dos ombros.
Os olhos, sua expressão de alma, estavam inquietos, mas não se fixavam nem faiscavam sedutores, como sempre foi seu mister. A ausência do sorriso, sempre largo, me deixou apreensiva.
Estávamos no quintal da casa de sua mãe, porém com outra formatação: Euzinha, suas irmãs de sangue e as minhas. Falávamos sobre Dora, quando bateram o portão, energicamente.
– Abram, que eu quero entrar! – e tornava a bater insistentemente, meio que esmurrando o metal.
Nos entreolhamos, e eu disse: “É a voz de Dora!”
Quedamo-nos, paralisadas. Coração aos saltos, contudo, reagi logo:
– Vou abrir. É Dora, não temos o que temer.
Levantei-me e subi a rampa – que inexiste na realidade – para alcançar o portão. Minha sobrinha, Nati, saía da cozinha e foi mais rápida, liberando o acesso da minha amiga.
Todavia, ela não me pareceu tão aflita, quanto nos dera a entender. Talvez só quisesse, mesmo, adentrar no espaço em que sempre reinou…
Não me lembro de ter sonhado com Dora nestes 21 anos e meio desde o encantamento, em 23 de maio de 2001.
Sei que provoquei esse encontro. Veio a meu pedido: à noite, antes de adormecer, lembrei-me da conversa que tive com a filha do maridão, recentemente, e fiz uma prece em intenção de sua alma.
Pedi um sinal de que Euzinha devo seguir adiante com o projeto do livro em que venho trabalhando há tempos, a partir dos seus diários; minha herança explicitada muito antes da travessia.
– Você é grande, jamais duvide disso – soprou em meu ouvido enquanto nos envolvíamos no abraço de despedida que outrora não pudemos nos dar.
Então, acordei, com olhos banhados em saudade e gratidão.
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Coisas estranhas andaram acontecendo já há algum tempo: primeiro, apaguei sem querer uma conversa, via zap-zap, com Maria de Lourdes, nossa irmã mais velha, irmã de sangue dela; depois, perdi o arquivo atualizado do livro, já do meio para o fim, e tive que refazer tudo a partir do original.
Texto recomposto, dei um tempo para recobrar forças e o equilíbrio antes de finalizar. Passei à transcrever a revisão do último livro publicado para a segunda edição; e a reunir crônicas, contos e poesias para um sempre adiado projeto de publicação.
Geralmente, uso o turno da noite para escrever e revisar. Já era tarde, e resolvi bebericar umazinha para relaxar antes de ir para o berço. Era o último copo. O infeliz escorregou… não, foi arrancado da minha mão, e embebedou o teclado…
Entrei em desespero: não era apenas o livro, era tudo que escrevi ao longo dos últimos três anos; não havia backup porque meu HD externo não se fazia reconhecer, por conta da oxidação da porta de entrada do velho portátil. E, pode rir, Euzinha desconfio das nuvens.
Fiz o que pude. Em pleno feriadão, não adiantaria pedir socorro: desliguei e emborquei a máquina, retirei a bateria e sequei o visível. O maridão colocou o equipamento sob ventilação por 12 horas, mas nada de ligar.
No dia útil seguinte, o técnico me fez esperançar: sim, seria possível recuperar os dados, e o computador. Deixei o paciente na UTI e viajei para Beagá por cerca de 15 dias. No retorno, o banho de água fria: o HD rodou na máquina dele, mas se recusou a abrir na original.
Sim, há empresas especializadas em recuperação de dados, mas o preço é salgado. Busquei indicações com Gabriel Felipe, um TI familiar, e submetido a análise, o diagnóstico é favorável: 75% de chances.
O preço é de um computador novo, dos bons, mas os dados me são fundamentais. E eu lisa, para variar. Busquei socorro com a filha Carol, que felizmente pode me emprestar a grana para os 50% de praxe. O resto, quando se confirmar a recuperação, vai no cartão; crédito não me falta, graças.
A velha máquina foi recauchutada, com SSD (HD mais potente) e novo teclado, placa reconstruída, tudo a preços de mercado.
E aqui estamos, em reestreia, três dias depois, porque o domingo foi de folga, a segunda-feira de chuva torrencial, e a terça de internet claudicante.
Não há do que reclamar: a gente só vive um dia de cada vez.
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