por Sulamita Esteliam
Antes que Aquário se achegue nas dobras do tempo, devo dizer que A Tal Mineira ficou na plateia desde a virada para e começo do ano mais importante de nossas vidas.
Há atenuantes. O primeiro é que emplaquei 69 anos dia 28 passado, e ninguém chega a essa marca impunemente. Além do que, meu portátil tem 8 anos e está na UTI há dois meses, à espera de ressuscitação ou de um substituto.
Não obstante, na real: é impossível competir quando baixa a dona Maria – mãe, avó, tia, dona de casa -, meu alter ego familiar, doméstico absolutista.
Dá-se em qualquer época do ano, mas especialmente no alto verão: a casa enche com seres amados de diferentes gerações e quadrantes, na proporção da temperatura praiana.
Vidas que se cruzam no afeto e tertúlias familiares, apetites renovados pelas distâncias. Pratos, copos e corpos que se misturam e se embolam nos prazeres da mesa, do bar, da música, da casa e da rua. Cama é lugar de descanso nessa conjuntura.
O bloco dos inimigos do fim é dominante, e antecipa o Carnaval. Quando o combustível seca, já é outro dia. Breve e necessário descanso para reabastecer, e tudo começa de novo.
E ainda bem que a possibilidade se mantém real através das gerações; no caso, com a cumplicidade e suporte de Julio, o companheiro de todas as horas, e lá se vão três décadas e tal…
E a dona Maria lá, na cozinha, na sala, na máquina de lavar, de costura, no parque, na praia… Evoé! O ano começa do jeito que Euzinha gosto: na medida das tais possibilidades.
Eis porque não pudemos estar em Brasília. Ensaiamos o ano inteiro, cultivamos vontades, vigilância e energia boa. Todavia, por evidentes contingências de demanda, não pudemos desfilar na Esplanada, acenar pro Lula, cantar, gritar e chorar de pura emoção.

Naturalmente que paramos para ver a posse do presidente pela inédita terceira vez neste país: um presidente da República sendo empossado por sua gente. Que beleza!
Todos viram, mas a diversidade não se cansa de pedir bis: Lula de braços dados com o povo sobre a rampa com sua amada Janja e a cadela Resistência. Prenúncio do novo e necessário alvorecer.
Já se escreveu e se disse quase tudo sobre a força do simbolismo da gente diversa e comum, fruto do que somos. Euzinha, porém, não abro mão de repetir, ainda que tardiamente: que ideia genial!
Aposto que saiu da cabeça arejada da parceira militante do presidente, que anda incomodando mentes atrofiadas em todos os quadrantes… Ou será que perdi algo?
Diga lá, corações alados!
Resgato a cena do topo da rampa, pois que inesquecível – e que não me exijam a ordem exata. A faixa, novinha em folha, livre de vodu, em tafetá verde e amarelo, passa de mão em mão: do cacique Raoni para a cozinheira branca da Vigília Lula Livre; dela para o companheiro plantonista nos 580 dias, e deste para o rapaz deficiente, trajado a caráter para lembrar a existência de seus iguais; o universitário recebe e passa para o jovem trabalhador, que repassa ao menino negro, campeão na vida e nas piscinas…
E chega às mãos da mulher catadora, de família de catadores, jovem e negra. Vestida com a camiseta-identidade do movimento, ela coloca em Lula a faixa conquistada nas urnas pela terceira vez, e apesar dos pesares, e abusos, e desmandos e apelações golpistas.
Aleluia, aleluia, aleluia!
Rito do resgate do sentido de cidadania e da democracia. A palavra, para além da inclusão, talvez seja pertencimento.
Um presente do Universo poder estar viva para assistir à cena. Imagino o sentimento de quem pôde fazê-lo da Praça dos Três Poderes.
Meu lugar de privilégio de mulher de pele branca, classe média, profissional da informação e das letras, não apaga a memória de minhas raízes que me colocam naquela imagem: menina periférica, filha de operários têxteis, neta de lavradores analfabetos, bisnetas de imigrantes peninsulares pobres e de mulheres indígenas violadas e aculturadas, mas lutadoras; mulheres de força e fé.
Trabalhadora desde os 11 anos, que chegou à universidade pública rompendo o duto estreito do funil social, na raça; num tempo sem Enem, sem ProUni e sem Fies. Euzinha, a trigésima segunda de 49 netos e netas gerados por sete dos oito filhos que minha avó e avó maternos botaram no mundo.
Fui a primeira da família, também do lado paterno, de prole restrita a quatro – até onde sei, pois meu avô era prolixo. Um tine de mulheres que não procriaram. O único homem, meu pai – também raparigueiro e por isso morreu cedo, aos 28 anos -, gerou outros cinco, quatro com minha mãe e só estes chegaram à idade adulta; sou a primogênita.
Não posso me esquecer de onde vim e como cheguei onde estou. É mania de pobre que respeita as origens. Lula jamais se esquece. Sobreviventes é o que somos e disso nos orgulhamos.
No primeiro domingo do novo ano, deixei-me submergir no dilúvio que desaguou do meu peito. E com direito a trovoadas. Um choro soluçado, que confundiu meu neto de 12 anos, que passava férias e assistia a transmissão ao vivo conosco. Ele perguntou ao Julio:
– Por que ela tá chorando!?
– Sua avó está emocionada. Ela se sente parte dessa história, e tem direito.
Mateus disse um “ah, tá!” E me abraçou, desajeitadamente.
A memória da mulher de hoje, que também é dona Maria, não se cansa de reprisar a cena. E minhas retinas tão fatigadas sabem que jamais verão nada igual neste país.
Rompeu-se o dique da opressão ancestral. Como naquela canção do Bituca e do Beto Guedes, de 1972, em plena ditadura, nada mais será como antes – amanhã ou depois de amanhã…
Ainda que tentem impor o caos, como tentaram, e foram repelidos, e têm que pagar pelo vilipêndio: os agentes, os financiadores e os orquestradores, civis e/ou militares.
Impunidade não é loteria.
Os olhos do mundo inteiro nunca dantes puderam contemplar tamanha ousadia no mesmo cenário: a reconstrução, a depredação e o resgate simbólico da essência de um país e do sentido e sentimento de nação.
No espaço de pouco mais de uma semana: a investidura popular gloriosa, dia 1°; a barbárie golpista da turba ignara, dia 8; e o gesto de união em defesa do Estado Democrático, com a República de braços dados, junto com os 27 governadores descendo a rampa para cruzar a pé a Praça dos Três Poderes.
Gesto que traduz e põe em prática a frase de encerramento do discurso de Lula na cerimônia de posse no Congresso Nacional:
– Democracia para sempre!
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Imagem da abertura: Instagram/@entrelinhascariri