Luís Felipe Miguel: ‘É urgente regular as big techs – muito além do conteúdo’

por Sulamita Esteliam

A intenção era escrever a respeito da prepotência do capital, brandido pela extrema direita internacional como o direito de estar acima das leis e das nações. Predadores é o que são.

O tom  adotado pelo Muskita – em perfeita tradução do Brum, obrigada – é picaresco. O dono do Xuister (não resisto à ótima definição da jornalista Eneida da Costa) tem vocação para a bizarrice. Todavia, isso não reduz a gravidade dos ataques à Justiça brasileira, personificada no ministro Alexandre de Moraes do ST.

Intromissão grotesca.

Na verdade, o mundo das plataformas digitais é terra de ninguém que vale trilhões; eis o xis, com trocadilho, com tudo, da questão.

E mais do que combatentes com capa de heróis, como bem lembra o cientista político e professor da UNB, Luís Felipe Miguel, demandam medidas firmes de regulamentação, já.

Liberdade de expressão tem preço, não pode ser parque de diversão fascista, como quer o Muskita e outros expoentes da bizarrice da direita radical mundo afora.

Topei com o texto de Luís Felipe Miguewl, lapidar como sempre, num compratilhamento em grupo no zap-zap, a partir de publicação no Facebook  – e no Instagram. Melhor partilhar a análise, como já o fiz neste blogue em outras circunstâncias e sobre outras temáticas.

A transcrição que compartilho, em boa edição, é da Com Ciência – revista eletrônica de jornalismo científico que, de quebra. oferece a bibliografia mais recentes do mestre. Dica de leitura para quem quer entender dos meandos da comunicação política na democracia, arte em que o autor é mestre.

por Luis Felipe Miguel*

Elon Musk decidiu partir para o ataque. Está ameaçando descumprir decisões da justiça brasileira relativas ao Twitter (que só ele chama de “X”).

Diz que vai perder dinheiro mas que “princípios” são mais importantes.

A gente finge que acredita. Como as outras vozes da extrema-direita da qual Musk se tornou corifeu, há muita conversa sobre princípios, mas procurando um pouco se acha a motivação real: grana.

O jornalista Luís Nassif juntou os pontos. Os agentes da Fundação Lemann no MEC montaram um edital relativo à informatização das escolas com exigências aleatórias que só a Starlink, de Musk, poderia atender.

Lemann, o saqueador das Lojas Americanas e líder, como disse Nassif, de um curioso grupo de bilionários que entram “apenas com indicações, não com dinheiro”, está interessado em fazer negócios com Musk. Por isso o agrado.

Mas o esquema vazou e o MEC retificou o edital, eliminando a pegadinha que beneficiava a Starlink. Por isso Musk está bravo e resolveu revidar.

A única dúvida é se os ataques foram combinados com o bolsonarismo ou se (o que é mais provável) o bilionário decidiu por conta própria sabendo que a extrema-direita local acompanharia de ouvido.

Areação de Musk é mais um dos riscos gerados pelo fato de que organizações monopolísticas, privadas, estrangeiras e com ânimo de lucro se tornaram a grande arena em que o debate público ocorre.

O bilionário nascido na África do Sul se singulariza por seu jeito destemperado e modos de criança mimada. Participa de reuniões de negócios intoxicado, responde tuítes com emoji de cocô, é adepto de bravatas, traumatiza seus filhos ao batizá-los de forma bizarra (“X Æ A-12”, “Exa Dark Sideræl”, “Techno Mechanicus Tau”). Mas Mark Zuckerberg e Larry Page, para citar apenas dois exemplos, são igualmente predatórios e danosos à democracia.

As plataformas sociodigitais são experimentos de modulação de comportamento em massa. As consequências em termos de qualidade do debate público, segurança e saúde mental (sobretudo de crianças e jovens), sustentabilidade ambiental ou preservação de direitos não importam – o que elas desejam é lucro e poder.

A doutrina liberal da liberdade de expressão, que ainda hoje funda muitas de nossas expectativas, incluía dois pressupostos que hoje estão erodidos.

O primeiro é que seria possível operar como se, em regra, os falantes agissem de boa fé. Isso não é mais sustentável num ambiente de mentiras deslavadas disseminadas em ritmo industrial.

O segundo é que o debate aberto promoveria a vitória das posições mais sólidas, melhor embasadas, com maior aderência à realidade.

Por isso, muito da crítica ao velho sistema da mídia corporativa apontava na direção de ampliar a pluralidade de vozes, a fim de que os diversos interesses sociais disputassem com maior condição de igualdade na esfera pública.

A comunicação guetificada das plataformas, com suas “bolhas” independentes, muda por completo a situação.

É necessário ter critérios o mais claros possíveis sobre a linha divisória entre conteúdos legítimos e ilegítimos. A solução não é deixar tudo ao arbítrio de Alexandre de Moraes – nem, muito menos, de Musk ou Zuckerberg.

Mas não basta isso. É preciso também regular o funcionamento dos algoritmos e regular o modelo de negócios das plataformas, a fim de reduzir seu império sobre os usuários.

Não é só a mentira que ameaça a democracia. O controle sobre os comportamentos também. Sem cidadãos autônomos, ela não é capaz de sobreviver.

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Aqui o link do artigo citado pelo autor: Para entender o jogo de Elon Must, por Luís Nassif

*Luis Felipe Miguel é professor titular do Instituto de ciência política da Universidade de Brasília (UnB), onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), e pesquisador do CNPq.

Publicou, entre outros, os livros:

Democracia na periferia capitalista: Impasses do Brasil (Autêntica, 2022)

O colapso da democracia no Brasil: da Constituição ao golpe de 2016 (Expressão Popular, 2019), 

Dominação e resistência – Desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018), 

Consenso e conflito na democracia contemporânea (Ed. Unesp, 2017)

Notícias em disputa – Mídia, democracia e formação de preferências no Brasil (com Flavia Biroli, Contexto, 2017)

O nascimento da política moderna: de Maquiavel a Hobbes (Ed. UnB, 2015)

Democracia e representação: territórios em disputa (Ed. Unesp, 2014)

Feminismo e política: uma introdução (com Flávia Biroli; Boitempo, 2014) e 

Mito e discurso político (Ed. Unicamp, 2000).

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