O silêncio não é opção

por Sulamita Esteliam

Não se pode apagar nem ofuscar a memória, ainda mais quando ela registra fatos históricos que interromperam vidas e processos político-sociais de um povo.

Formar as consciências das novas gerações e resfrescar a mente de gente esquecida é fundamental para que atos totalitários não se repitam. E o silêncio, a omissão não contribuem em nada para a conexão com a realidade histórica e contemporânea.

É o sentimento que move brasileiras e brasileiros, sobreviventes, familiares de mortos e desaparecidos, ou solidários a dor que não se acaba, organizados em sindicatos, movimentos sociais e partidos políticos.

Gente que foi às ruas neste 1º de abril em diferentes cantos do país, no aniversário de 60 anos do golpe  de 1964; a mentira que tentaram nos vender como “revolução de 31 de março” para “salvar o Brasil do comunismo”.

A noite da ditadura foi longa, durou 21 anos, e deixou um rastro de sangue, medo, delírio e abulia que nos persegue ainda hoje. Está aí a recente tentativa de mais um golpe de Estado, levado a cabo no 8 de janeiro, pelo atiçamento covarde das vivandeiras da ditadura civil-militar.

Sem esquecer do impeachment fraudulento que derrubou a presidenta Dilma Rousseff, que sobreviveu a seus algozes na juventude e que, valente, instalou a Comissão Nacional da Verdade. E aí começou na irritação militar com seu governo.

Sobretudo o general que chefiou o Exército, Villas Bôas, que posteriormente chantegeou o STF contra a libertação de Lula, via habeas corpus.

Um tapa na memória

O fantasma que paira sobre a democracia brasileira veste farda e calça coturnos, desde sempre. AS lembrar que os militares se prestam a fazer o serviço sujo para a plutocracia, quando o governo de plantão desagrada seus interesses.

Foi assim desde a proclamação da República, passou pela chamada Era Vargas instalada pela dita Revolução de 30; na verdade um golpe armado, que depôs o presidente Whashington Soares e impediu a posse do presidente eleito, Júlio Prestes, que derrotara a Aliança Liberal de Vargas.

Getúlio Vargas assumiu o governo provisório, convocou uma Assembleia Constituinte para elaborar a nova Constituição. Ao invés disso, o presidente interino dissolveu o Congresso e tentou se sustentar no poder, fazendo as próprias regras.

Foi convencido do contrário com a revolução constitucionalista de 1932, liderada pelas forças paulistas. Não tomaram o poder, mas lograram a Constituinte e a Constituição de 1934, que consagrou a eleição indireta que elegeu Vargas para mandato de quatro anos.

Não contente, antes do fim do mandato, e na impossibilidade de reeleger-se, o presidente manipulou a polaridade entre os facistas do integralismo chefiado por Plínio Salgado e o comunismo liderado por Luiz Carlos Prestes: deu o autogolpe e instalou a ditadura do Estado Novo, permanecendo no poder até ser deposto em 1945.

Voltaria ao poder em 1951, pelo voto popular. Nos braços do povo que beneficiou com direitos trabalhistas no período ditatorial. A oposição, chefiada pelo deputado undenista Carlos Lacerda não lhe deu trégua. Vargas para não ceder, suicidou-se em agosto de 1954.

Veio a era de ouro do governo Juscelino Kubitscheck e seu Plano de Metas “50 Anos em Cinco”, a construção e inauguração de Brasília, a industrialização do país em marcha célere. Não havia reeleição naquele tempo, se tivesse, muito provavelmente JK seria reconduzido à Presidência da República.

Jânio Quadros (PSC) é eleito no final de 1960, mas em sete meses renuncia, numa tentativa frustrada de autogolpe. O vice, João Goulart (PTB), só assume com a aprovação de emenda que instala o Parlamentarismo provisório para reduzir seus poderes.

Tancredo Neves (PSD) é indicado Primeiro Ministro, mas a emenda dura pouco: o parlamentarismo é recusado em plebiscito. e em 1963 o sistema presidencialista passa a vigorar novamente.

Há revolta militar de tenentes, suboficiais e cabos por participação político-eleitoral; as Ligas Camponesas promovem invasões de terras.

Jango inicia uma série de comícios para garantir apoio popular às chamadas reformas de base – reforma agrária, urbana e constitucional – recusadas pelo Congresso. Começa pelo Rio de Janeiro no dia 13 de março, onde reúne 200 mil pessoas e anuncias medidas como a nacionalização das refinarias de Petróleo.

Menos de uma semana depois, a direita organiza a Marcha em Deus pela Família e Liberdade, que junta 500 mil pessoas em São Paulo e cerca de 100 mil em Belo Horizonte.

Jango é deposto e se refugia no Urugai, depois na Argentina, onde acaba morto por ataque cardíaco, em 6 de dezembro de 1976, aos 57 anos. Suspeita-se de que foi envenenado.

No mesmo ano, em 22 de agosto, JK morre em acidente automobilístico em Resende, Estado do Rio. Há controvérsias sobre o laudo de “fatalidade”.

É a História. Talvez resida aí esse temor eterno do golpe militar.

Lula paz e amor, de novo

Talvez, somada a instabilidade política potencializada na última década, a guilhotina permanente explique atitude, triste a meu ver, do presidente Lula de vetar manifestações oficiais alusivas aos 60 anos – no âmbito do governo federal, é claro.

Tentativa, vã, de pacificar os ânimos, que decepciona sobreviventes e familiares das vítimas do arbítrio. O bom é que na democracia prevalece o livre arbítrio. O que não nos livra dos fantasmas.

Num país em permanente sabotagem a qualquer gesto do governo de melhorar a vida das pessoas do andar de baixo, talvez até faça sentido fingir-se cordato. “Jogar água na fervura”, como observa a colega Cynara Menezes, a Socialista Morena, em artigo no Brasil 247 – linco ao pé da postagem.

Há ocasiões, como na condenação ao genocídio de palestinos por Israel, em que a opção é atiçar a fogueira. É bem o jeito Lula de ser, o que exaspera à esquerda e à direita; tudo amplificado pela mídia venal.

Povo na rua: Ditadura Nunca Mais

No Recife, a Caminhada do Silêncio começou no Movimento Tortura Nunca Mais, passou pelo Colégio São Bento para homenagear Jonas José de Albuquerque Barros e Ivan da Rocha Aguiar, metralhados na capital pernambucana pelas tropas do Exército que depuseram Miguel Arraes.

Na Assembleia Legislativa houve ato em tributo às vítimas da ditadura instalada em 1964, requerido pelo deputado Waldemar Borges. Ato final se deu na Câmara Municipal, por iniciativa da vereadora Liana Cirne, em homenagem à advogada Mércia Albuquerque, personagem icônica na defesa de presos políticos.

Em Belo Horizonte, o ato se deu em frente ao antigo DOPS, na Avenida Afonso Pena. Fotos com os mortos e desaparecidos mineiros foram afixadas no muro do lugar que é a memória do terror do Estado durante a ditadura.

ATo Dops bh - coletivo alvorada

Em São Paulo, a Caminhada do Silêncio foi no domingo, 31. O ponto de partirda foi a sede do antigo DOI-CODI. Um painel bordado pelos coletivos de bordadeiras ativistas homenageia as 434 pessoas mortas ou desaparecidas identificadas pela Comissão da Verdade.

No 1ª de abril, o painel integrou a Caminhada Reversa, saiu da Candelária, no Centro do Rio, passou por Petrópolis, em ação solidária para doação de alimentos, e desaguou em Juiz de Fora. Foi daí que partiram as tropas golpistas do general Mourão em 31 de março de 1964. Na esquina do Rio com Minas, a marcha agregou coletivos vindos de São Paulo e do Espírito Santo.

*******

Com

Foto capa: montagem  a partir de foto de Lins Matheus/Equipe Cida Pedrosa da manifestação no Movimento Tortura Nunca Mais, no Centro do Recife e card-memória PT-PE.

Socialista Morena/Revista Forum

Câmara dos Deputados

*******

Postagem revista e atualizada em 03.04.2004, às 19h53:  correção de erros de digitação, migração de parágrafo fora da sequência; inclusão de frases para melhorar a compreensão de determinados trechos e de intertítulos para facilitar a leitura.

É nisso que dá escrever de madrugada.

2 comentários

Deixe uma resposta