
por Sulamita Esteliam
Estava na loja de uma prima-irmã, em Sete Lagoas – o nome é Caminho das Índias -, quando fui surpreendida com um beijo jogado da calçada por um moço de aparência simples, que passava. Limitei-me a sorrir, mas aquele gesto ficou em minha cabeça; em busca do motivo.
Pouco mais de uma hora depois cruzei com o mesmo rapaz numa praça da área central, quando nos dirigíamos a pé para o almoço. O cidadão mirou o boton que Euzinha carregava do lado esquerdo do peito e abriu o sorriso, antes de me soprar outro beijo.
Então, a suspeita que me aflorava à cabeça se confirmou: a ideia do #LulaLivre não é restrita a meia dúzia de petralhas ou comunistas vagabundos dos grandes centros, como querem os aloprados de direita.
O moço setelagoano, sem querer, somou-se ao tapa na saudade de gente que eu amo naqueles sítios para tornar meu fim de semana especial. E que, claro, não deixou a situação política deste #TristeBrasil fora das conversas – para o mal e para o bem.
Pacientemente, escutei mais de uma vez a frase pronta e errônea de que “o PT acabou com o país”. Saquei de meus alfarrábios digitais para mostrar, com dados oficiais, o tamanho da mentira.
O Brasil nunca foi tão rico, no sentido de reconhecimento e distribuição de suas riquezas, ainda que incipiente para séculos de descaso com sua gente mais humilde, como nos governos Lula e Dilma: nivel de emprego, educação, saúde, acesso a bens materiais como nunca dantes.
– Como na nossa família ninguém teve acesso a isso? – me perguntou minha única tia viva, que eu amo de paixão.
– Teve, sim, tia. Alguns, inclusive, ganharam dinheiro como nunca dantes. Só que a memória é curta e conveniente.
E enumerei um a um os casos de opulência e de acesso à universidade e cursos técnicos, por exemplo, impensáveis antes dos programas sociais e das políticas públicas no campo também da economia.
Não é só Bolsa Família, que é muito importante principalmente nas comunidades “do fim do mundo”, de onde brotamos nós. O Lula costuma dizer que “pobre não é problema, é solução”.
O dinheirinho do Bolsa Família, por exemplo, é pouco, mas o pobre transforma suas carências em consumo, e com isso movimenta a economia – o comércio vende mais, a indústria produz mais, o produtor planta e colhe mais…
Todos temos que trabalhar, alguns carregam o empreendedorismo na veia, se esforça, mas com ajuda e políticas de incentivos adequadas, fica mais fácil chegar lá.
A prima-irmã, quando nos encontramos, ajudou no processo, citando o próprio exemplo de comerciante bem-sucedida. Relatou, ainda casos de seu núcleo familiar restrito, pessoas que acessaram a universidade por meio do Enem, Pró-Uni e do Fies, programas criados ou incrementados por Fernando Haddad, quando ministro da Educação de Lula.
– Ah, é, não sabia disso! Então, um homem como esse (o Lula) deveria ser homenageado, ir no céu, não estar preso…
Minha tia é muito religiosa, e tudo na vida dela tem a força da fé. Pariu e criou nove filhxs, tem dezenas de netos, mas vive só, assistida por parte da prole feminina; cada um tem que cuidar da própria vida.
Informa-se basicamente pela televisão, Globo, como a maioria da população brasileira. Conversamos também sobre isso, de como é possível manipular a verdade segundo os próprios interesses.
Sei bem que a conversa se perde nas brumas da estabilidade da memória, cada vez menor, própria da idade avançada. Curioso como a des-informação deliberadamente torta tem mais força nesse cabo de gerra que é a disputa da narrativa.
Mas a gente não pode se furtar ao diálogo sob o argumento de que cada um tem seu jeito de pensar. Claro, isso é liberdade democrática. Não obstante, democracia é solidariedade, é também compaixão. Sobretudo para os cristãos, não pode se encerrar no próprio umbigo, muito menos implodir uma nação sob falso argumento moral.
“Deus sobre todas coisas e o próximo como a ti mesmo”, é bom não esquecer.
Tenho ostentado boton ou apliques da campanha pela libertação do ex-presidente Lula de há muito. Recebo olhares curiosos, sorrisos e acenos de aprovação.
Mas colho e anoto, também, sinais de desagrado, ainda que em menor monta. Recebo alguns questionamentos, vez por outra, que respondo pronta e educadamente, se esse for o tom da conversa. A maioria parece indiferente, todavia.
Dois dias antes do sábado de aleluia, num supermercado da Zona Sul de Belo Horizonte, uma mulher branca e loira, classe média que sonha com o paraíso nível A, quase tem uma síncope, a pobre. Talvez seja um pouco mais idosa do que esta velha escriba, o que me fez debrear. Além do mais, estava com meu neto.
Aconteceu no exato momento em que seus olhos deram com meu adereço #LulaLivre, coroado de flores a la Frida Kalo – produção do coletivo Alvorada, daqui da capital mineira.
Se houvesse combustível no ar, teria ateado fogo no armazém metido a besta, somente com o olhar.
Antes de entrar em surto, ela me confrontara sobre meu neto de 9 anos, que guardava lugar na fila preferencial enquanto fui buscar um produto que havia esquecido.
– Este menino está com você?
– Sim, senhora, está.
Então, a mulher mudou de fila e destampou o falatório: contra “os comunistas do STF, que vão dar um jeito de soltar o Lula“; contra a “mídia que manipula contra tudo que vem de Bolsonaro; contra Cuba, a Venezuela e até a União Europeia.
Falava e olhava para mim, na fila ao lado. E Euzinha sorria para ela, que aumentava o tom da pregação.
– O comunismo acabou com a Europa – destilou, e nisso foi confrontada, elegantemente, por um senhor de meia-idade; mas não baixou a guarda.
– Socialismo e comunismo é tudo farinha do mesmo saco.
O homem também sorriu para a infeliz, embora talvez não tenha se dado conta de que Euzinha, na fila ao lado, era o alvo do veneno. É o que chamo de direita espumante para desgoverno delirante se afogar sem medo de ser in-feliz.
Comentei com a operadora do caixa, que sorriu em concordância:
– Até parece que o ouvido da gente é paiol, né não…!?
A senhora que estava à minha frente e terminava de guardar suas compras na sacola também sorriu e não se conteve:
– Tem que ter peito para carregar este broche. Parabéns!
Devolvi o sorriso com uma piscadela:
– Faço a minha parte. É como usar chapéu.
Certa vez, uma editora de moda me disse que é preciso ter pescoço para usá-lo. Pois o tenho. É parte do meu ethos, é ingrediente do que sou.
Sim, nesta terça, pós-Páscoa, o STJ julga um dos vários recursos da defesa do ex-presidente Lula no caso do triplex do Guarujá, que não é dele, mas pelo qual foi condenado e se encontra encarcerado há 380 dias.
É uma chance, ainda que remota, de se fazer o que é devido e que boa parte do mundo inteiro clama: #LulaLivre!
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Texto alterado e atualizado com novas reflexões sobre o contexto no meio do dia deste 23 de abril.