por Sulamita Esteliam
Celebrar a indignidade é uma aberração própria de quem não respeita a verdade. O regime parido das entranhas do golpe civil-militar de 1964 foi, sim, uma ditadura. Torturou, matou uma geração de jovens que ousaram opor-se ao descalabro, exilou centenas de opositores, calou e censurou os críticos, a arte e a cultura.
Reescrever a História com mentiras não é decente, é imoral. Particularmente para quem se arvora em palmatória da moralidade, enquanto sustenta, para horror mundial desespero nosso de cada dia, um miliciano, mentiroso, falastrão e genocida na cadeira presidencial.
A charge do conterrâneo Renato Aroeira traduz à perfeição o momento que nos assombra, dupla, triplamente. Obrigada.
Lugar de milico é na caserna e na defesa real da soberania da nação. Assim é nas democracias dignas do nome, ainda que democracia, provado está, não seja a panaceia do mundo.
Compartilho o texto do amigo jornalista, escritor e poeta recifense, que provou na pele os horrores dos anos de chumbo . Uma noite que durou 21 anos, e que permanece impune, e que por isso mesmo se assanha de tempos em tempos, como cadela em cio permanente.
Tempo mais do que suficiente para Euzinha aprender sobre a realidade amarga, e dela provar. Afinal, Euzinha acabara de completar 10 anos quando os milicos se prestaram a fazer o serviço sujo para a elite dominante, a dona do capital: derrubar um governo popular.
Sim, é lugar comum e recorrente, a história se repetir como farsa.
Publicado originalmente no Facebook, pedi autorização ao autor, que me respondeu com seu humor peculiar:
– Sempre digo que meus textos são de domínio público e delírio púbico…
Este é o Marcelo Mário Mello, sempre generoso, obrigada.

LEMBRANDO O PRIMEIRO DE ABRIL DE 1964 NO RECIFE
por Marcelo Mário Mello – no Facebook
No dia anterior já corriam as notícias sobre deslocamentos de tropas em São Paulo e pronunciamentos golpistas civis e militares. À noite, no Colégio Estadual de Pernambuco- CEP, hoje com o antigo nome de Ginásio pernambucano, o professor Adauto Pontes fez um discurso inflamado contra os golpistas, dizendo que seriam esmagados. Quando já tinha saído da sala, voltou e anunciou da porta: e vai ser pacificamente!
No outro dia o Recife era uma correria só. As tropas do Exército em um grande cerco envolvendo toda a praça da Republica e o Palácio. Notícias de invasões de sindicatos, prisões. As lojas fechando e o povo andando apressado para pegar ônibus. Sugiram rumores no boca a boca militante de que haveria uma resistência partindo da área portuária, com distribuição de armas. Dezenas de pessoas se concentraram na Praça do Arsenal da Marinha, à espera de alguma coisa, ante as horas escorrendo. Em certa altura fomos completamente cercados a distância por fuzileiros navais, que simplesmente se postaram e nos deixaram ir saindo.
Correu a notícia de que havia uma assembleia geral na velha Escola de Engenharia, na Rua do Hospício. E saímos daí em passeata, em direção ao Palácio das Princesas, para defender o governo de Miguel Arraes, cumprindo em parte o roteiro atual do
Galo da Madrugada. Quando estávamos na altura da Pracinha do Diário, no cruzamento com a Av. Dantas Barreto, em marcha passo de ganso, avançou contra nós um pelotão vindo das imediações do Palácio da Justiça, que começou a disparar, inicialmente, para cima. Depois foi baixando o ângulo até o nível dos manifestantes.
Alguns companheiros gritaram: “é festim”! Mas eu vi os pedaços de reboco caindo do alto de um edifício, sob o efeito das balas, e dei o grito de alarme: “não é festim, não! É bala!” Entre correrias e tiros, avistei o companheiro Oswaldo Coelho, que me havia recrutado para a base do CEP e agora estudava Direito, carregando um corpo masculino com um grande buraco se estendendo pelo pescoço, o queixo arrancado a tiros. Somente depois, voltando para casa, soube que o ferido era Jonas.
Junto a Jonas também tombou o jovem Ivan Aguiar, comunista de nascença, filho de Severino Aguiar, que morreu na década de 90 com mais de noventa anos, ostentando o orgulho de ser o mais antigo comunista vivo do Brasil. Ivan havia sido aprovado no vestibular para engenharia e aguardava o momento de começar a fazer o curso. Já ferido, ele ainda conseguiu disparar um tiro de um revólver 38 que Antônio Florêncio, comunista de Palmares, recolheu e guardava como relíquia.
A Ivan, um brinde pela iniciativa desse – lamentavelmente único – tiro dado em Pernambuco em defesa da democracia e contra os golpistas de 1964. Diz-se que, ao lado de Ivan e Jonas, também tombaram um homem desconhecido e uma funcionária da loja de produtos masculinos – Remilet – colhida por um tiro no seu local de trabalho, na Av. Dantas Barreto.
Aos 16 anos, depois de passar por três meses de prisão, quando perguntado, num inquérito, o que achava da “Revolução de 31 de Março de 1964”, Davizinho, David Capistrano Filho, respondeu que não poderia achar nada de bom, porque o seu pai estava sendo perseguido, ele fora preso e o seu melhor amigo havia sido morto. Em cartas a mim, na década de 1960, David se refere a momentos de profundo sofrimento pela perda de Jonas, denominando-os de “jonismo”.
Vim saber mais de Jonas depois da sua morte. Li poemas seus. Apreendi a dimensão da sua amizade grudenta com Davizinho e Rosa, formando um trio inseparável. Rosa me disse que, pouco antes do golpe de 1964, ela e Jonas tinham ficado “de mal”, por iniciativa dela e a partir de uma inconfidência de David, revelando-lhe segredo que Jonas lhe havia confiado. Rosa, que terminou namorando com David, num certo tempo alimentou por Jonas uma paixão nunca correspondida.
Um dia, em 1964, acompanhei numa homenagem a Jonas o poeta Albérgio Maia de Farias, também companheiro do PCB e das lutas estudantis. Na Galeria de Arte, da qual Jonas era frequentador, na margem do Rio Capibaribe, em frente aos Correios, ele deixou pregado no mural um poema que começava assim: “Na Galeria de Arte/há um banco de saudade/e há gestos de futuro/quebrando a serenidade”.
Jonas e Ivan Aguiar tiveram suas vidas interrompidas na juventude. Passaram à condição de referências simbólicas dos jovens que lutaram pela democracia e contra a implantação da ditadura de 1964. Transformaram-se em bandeiras de idealismo e resistência, tremulando nos nossos corações e apontando para a coerência dos nossos passos.
Com o mote do roteiro do Galo da Madrugada, o poeta Albérgio Maia de Farias, que integrava naqueles tempos os quadros dos comunistas secundaristas do PCB, escreveu os versos:
POEMA
Albérgio Maia de Farias
Por onde o Galo, hoje, passa
passaram galos de briga
cocorocando outros frevos
nas Sertãs da avenida
eram cantigas do peito
que queriam o bem da vida
um amor quase perfeito
que suava o corpo todo
de sonho, alegria e medo
Era porrada na cara
do Trianon à Pracinha
eram fuzis eram balas
não conseguiram ser minhas
nem conseguiram calar
o frevo de nossas falas.
Hoje, quando o Galo passa
sou tentado a compreender
que o sonho adolescente
continuou a ferver
nos clarins de outra memória
no frevo canção da História,
embora as graves lembranças
impossíveis de esquecer.