Reflexões sobre vida e morte em tempos de Covid-19

por Sulamita Esteliam

No Instagram, o relato de uma jovem médica, que eu conheço desde criança, me tocou profundamente e me levou a pensar em quanto é confortável minha situação de isolamento.

A reflexão sobre a rotina nos plantões numa UTI de Covid-19, o incômodo das EPIs, as vitórias e perdas, as escolhas na luta diária contra o vírus, e pela vida, desatou as lágrimas, e trouxe o alívio necessário para retomar à trincheira, ela garante.

Chorou emoções represadas, depois de dormir horas, em seu dia de folga, desabou sobre o sofá da sala de casa. Ela fala sobre o risco cotidiano a que está exposta como parte da escolha profissional que fez. Cuidar das pessoas à revelia da própria segurança.

Não fala do medo.

Todavia, essa é uma reação natural, compreensível. Você pode sublimar o temor da morte, mas não há como se despir da própria humanidade.

Pernambuco já detém a segunda taxa de letalidade por Coronavírus do país, 5,31 mortes para cada 100 mil; a primeira é o Amazonas, 7,33. Dados do dia 28 de abril, subnotificação presente.

A morte é uma condição social.

Ocorre que é exatamente que tem trazido sérias dificuldades ao sistema de saúde no Recife.

O grau de adoecimento entre os profissionais de saúde é muito grande. Há quase dois mil trabalhadores afastados por suspeita ou contaminação comprovada. E o medo ronda o sistema, a ponto de a prefeitura e o governo estadual não conseguirem contratar.

Sindicatos profissionais denunciam condições inadequadas de trabalho, o que inclui falta de EPIs.  Chega-se ao paroxismo de 97% dos vagas de UTI e 86% de enfermaria ocupadas. Também não há respiradores suficientes, afirma reportagem no Marco Zero Conteúdo.

Mas a situação é ainda mais bizarra quando se constata que não faltam leitos – há dois hospitais de campanha montados pela prefeitura, mais um da rede privada, que estava desativado, encampado e equipado para atender as emergências da pandemia. Só falta o principal, gente para o trabalho especializado.

Agora à noite, navegando pela blogosfera, topei com reportagem do The Intercept Brasil que me arrepiou até a medula e me fez lembrar a jovem médica que vi crescer e de quem acompanhei as vitórias, como se fosse minha sobrinha, minha filha.

Trata da recomendação do Cremepe para que os médicos utilizem…

escore Unificado para Priorização (EUP-UTI) de acesso a leitos de terapia intensiva, assistência ventilatória e paliação, como meio de hierarquização da gravidade dos pacientes, na ausência absoluta de leitos suficientes para atender a demanda terapêutica”.

Em miúdos: na carência, priorizar quem tem mais chance de sobreviver, segundo pontuação que se baseia em critérios de curto e longo prazos, com ou sem comorbidades. Se houver empate e apenas um leito, a escolha deve recair sobre gestantes e pessoas mais jovens.

Ninguém merece ser obrigado a fazer esse tipo de escolha. Muito menos ser escolhida a não seguir adiante.

Euzinha aqui, no aconchego do meu lar, com tudo ao alcance da mão, não tenho razões para me abater nem o que temer. Repito para mim mesma, todas as manhãs, faça sol ou faça chuva: melhor ficar em casa.

Ocorre que tem mais chance de sobreviver quem é jovem pode ser em tese. A condição para morrer é estar vivo.

Mas é fato que a pessoa saudável, sem doença crônica, que mora e come melhor, tem mais chances de superar o vírus. O subnutrido, que se apinha num quarto com a prole, mãe e pai, sem comida suficiente, água e sabão, banheiro digno do nome, é presa fácil.

Essa gente é quem se aglomera também em transporte público, se ainda tem onde trabalhar.

Ou se espreme nas filas, sem distanciamento mínimo, com ou sem máscara, em busca da cesta básica para ter o que comer.

Ou se escalda junto a iguais à porta da Caixa para tentar sacar o minguado auxílio pandemia, enroscado na burocracia e na má vontade e no escárnio do desgoverno.

Isso, tanto quanto o aparelhamento do sistema de saúde, é que, certamente, faz a diferença em Manaus, no Recife, Rio e São Paulo, e em qualquer lugar do mundo onde existam pobres e um Estado negligente.

“A morte é uma doença social.”

Ouvi hoje do historiador Sidney Chaloub, professor em Harvard, em live com o doutor em microbiologia e youtuber da vez, Atila Iamarino. Achei a frase tristemente perfeita.

Obrigada, Genin Guerra, pela generosidade da charge.

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Deixo os acessos às reportagens citadas no texto:

Marco Zero Conteúdo

The intercept Brasil

 

 

 

 

 

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