por Sulamita Esteliam
Semaninha danada essa, viu! Quase que me dissolvo de tristeza e indignação. E como o corpo fala, passei os últimos dois dias de pau a pique digestivo. Parecia que eu tinha engolido um boi, com chifre e tudo.
O maridão passou aperto.
Nada que não se resolva com água de coco, chá de camomila, erva doce e boldo; nunca é demais lembrar que se tem fígado, e não se tem mais vesícula, como parte do processo.
Então, o jeito foi migrar para o vinho, bebida que pouco frequenta o meu paladar. E só para não passar batida na sexta.
E porque hoje é sexta, postei lá canal a segunda leitura literária. Sim, busquei socorro no conterrâneo, o Poeta Maior, Carlos Drummond de Andrade. Olhaí!
Vamos convir que o conto vem a calhar no panorama atual do Brasil! É o que fazem os poetas, em verso e prosa, cabem em qualquer tempo e lugar.
Transcrevo o texto, que não está na descrição, ainda:
OU ISTO OU AQUILO
Carlos Drummond de Andrade*

O DONO DA USINA, entrevistado, explicou ao repórter que a situação é grave. Há excedente de leite no país, e o consumo não dá para absorver a produção intensiva:
– Uma calamidade. Imagine o senhor que o jornal aqui do município reclama contra a poluição do rio, que está coberto por uma camada alvacenta. Não é nenhum corpo estranho não, é leite. Estão jogando leite no rio porque não têm mais onde jogar. Os bueiros estão entupidos. A população, como o senhor deve saber, é insuficiente para beber toda essa leitalhada ou comê-la em forma de queijo, requeijão, manteiga e coisinhas.
– Insuficiente? Parece que a produção de crianças ainda é maior do que a produção de leite.
– Numericamente sim, mas não têm capacidade econômica para ber leite. Têm apenas boca, entende? Então nada feito. Se falta dinheiro aos pais dos garotos para adquirir o produto, anda bem que se joga o leite fora, em vez de jogar os garotos.
* Poesia e Prosa – Antologia, pg 1301, Nova Aguilar 1992

Os Ombros Suportam o Mundo
Carlos Drummond de Andrade*
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
*Poesia e Prosa – Antologia/Sentimento do Mundo, pg 67, Nova Aguilar 1992