Túnel do tempo: em entrevista, Dom Hélder Câmara fala sobre pacto social e participação política – ‘dar vez e voz ao povo’

por Sulamita Esteliam

O aniversário de 113 anos do nascimento de Dom Hélder Câmara, no último 7 de fevereiro, me fez recuar no tempo 38 anos. Foi quando o entrevistei em Belo Horizonte, quando da visita de Sua Excelência, Arcebispo de Olinda e Recife, à minha Macondo de origem.

A conversa se deu na Cúria Metropolitana, no vetusto casarão junto à Praça da Liberdade. Não me lembro nem tenho anotado, mais muito provavelmente foi coletiva, porque nas respostas Dom Hélder usa o pronome e o verbo no plural: “vocês”.

Sim, Euzinha guardo a transcrição – sou dessas – e a busquei nos alfarrábios: folhas amareladas pelo tempo, datilografadas, isso mesmo, na velha Remington que operava no Diário do Comércio, onde atuei alguns anos como repórter, primeiro de Economia, depois de Política.

A entrevista aconteceu em 05 de dezembro de 1984, exatamente, como se pode ver na imagem mais embaixo. Memória essencial.

No posto de presidente estava um general, o João Figueiredo, tão casca grossa quanto o capitão reformado por indisciplina de hoje, mas sem pose de ridículo.

O despresidente de plantão está mais para bobo da corte. É boi de piranha dos milicos, que, para variar, se arvoram em consciência nacional, enquanto se locupletam das benesses do poder. Serviram-se e se servem do títere para operar a máquina do Estado em desfavor do povo e do país.

Naqueles idos do século passado, as Diretas, já! haviam sido derrotadas pela armação política conservadora, articulada pelo então governador de Minas, Tancredo Neves. O país vivia a espectativa da escolha do  presidente pelo Colégio Eleitoral, o primeiro civil em 20 anos.

O processo ocorreria a 15 de janeiro de 1985. E o manobreiro do pacto que conduziu a “transição possível” tornou-se candidato confiável dos militares.

Assim, o pluripartidarismo articulado pelo regime em 1979 foram os anéis para não se perder os dedos, a moral. A ditadura militar tornara-se insustentável, e a caserna não escapa ao autoritarismo.

De qualquer forma, o bipartidarismo já cumprira seu papel de simular uma “normalidade” política inexistente.

À essa altura, o PMDB já reaglutinara as forças centristas do PP (Partido Popular) de Tancredo Neves, que já haviam coabitado no MDB.

E o PDS, costela da antiga Arena, se dividira para gerar o PFL e formar a Aliança Democrática, semente do Centrão. Via Congresso, elegeria indiretamente o ex-governador mineiro o primeiro presidente da redemocratização à brasileira.

O arrumadinho tinha do outro lado, o ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf, do PDS. A História conta que o avô do Aécio Neves ganhou, mas não levou: adoeceu na véspera da posse, oficialmente, e passou desta para a melhor no dia 21 de abril – também oficialmente.

Deixou-nos José Sarney (PFL), que depois se filiaria ao PMDB, de herança.

Dom Hélder Câmara em BH - 05 dez 1984
Originais da transcrição da entrevista com Dom Hélder, relíquia dos meus alfarrábios: Belo Horizonte, 05 de dezembro de 1984 – Foto: reprodução
ENTREVISTA/DOM HÉLDER CÂMARA

A expressão “pacto social” sempre foi moda por aqui. Não obstante, quase sempre se mostra como articulação farsesca.

Este país que se move feito um mastodonte, engolido pela realidade mundial, mas também pela sua própria vocação para a  a estupidez. Muito ao estilo da ganância da classe dominante, do manobrismo político de seus intermediários, do egoísmo das classes médias e da cegueira  reinante, inoculada nas massas.

Duvida? Pois note o quanto é atual a conversa com Dom Hélder há quase 40 anos. A não ser pelos personagens estrelados há décadas, e os anos agorta avançados no terceiro milênio, bem que poderia ser trazida aos dias atuais, ao panorama-Brasil.

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Energia em defesa dos pobres, “o povo de Deus” – Fotos capturadas no CendHeC/IndHeC e revista Missões
  • Sobre o pacto social proposto por Dom Ivo Locheiter, presidente da CNBB

Dom Hélder Eu creio que nós todos estamos a recomhecer essa necessidade. Aí, o que pode diferir de uns para outros é o que entender por esse pacto social. O que é que se põe lá dentro. Os entendidos diz quem que o Brasil, nesses últimos anos, passou do quadragésimo nono lugar na economia do Oeste ppaara o Oitavo lugar. Então fica uma impressão de que o país vai muito bem. Mas, segundo outras estatísticas que me parecem igualmente seguras, ha menos de 10%de brasieleiros sempre mais ricos, e a massa tendo dificuldades cada vez maiores. Uma massa imensa, que segundo as Nações Unidas são mais de dois terços da humanidade, vivendo em uma situaçáo sub-humana de miséria e de fome.

Então, eu acho que um pacto social, a meu ver, entre outros pontos, tinha de ser ajudar a esse pequeno grupo sempre mais rico a abrir os olhos, e verificar que isso não pode continuar assim.

Mas aí a gente vê que n]ao basta só o trabalho do Brasil. Porque hoje a gente sabe muito bem que as economias se ligam, se superligam. Quando, em 1964, eu voltei ao Nordeste (vindo do Rio de Janeiro), como arcebispo de Olinda e Recife, para mim era evidente que, ao lado de um trabalho local indispensável, seguro, sincero com o povo, era indspensável tabém um trabalho sincronizado nos países industriais ricos. Porque, sem mudanças lám, as nossas seriam impraticáveis. Enquando houver aquele grupo de países sempre mais ricos esmagando mais de 2/3 da humanidade – vejam bem a expressão e das Nações Unidas, “situação sub-humana”. É situação de animais, de miséria e fome. E não é exagero não. No Brasil, isso se repete com menos de 10% sempre mais ricos com o sacrifício da população.

Um pacto social, a meu ver, deve ser um pacto social corajoso, audacioso, para ir aos problemas fundamentais, sem ódio, sem violência.

Dentro de um pacto social há muita coisa a rever. Mas eu jogo muita fé. Hoje em dia nós temos forças vivas admiráveis dentro do mundo inteiro, inclusive dentro do nosso país. E eu não esqueço os jovens. Eu tenho a impressão de que , se a gente tiver coragem de falar com os jovens, eles podem ser uma força admirável. Como também o povo. Por que deixar o povo à margem? Esses trinta e poucos projetos que temos aí, como Carajás, o povo não foi ouvido sobre nada. Nem sobre os projetos nem sobre as dívidas que estamos assumindo. E não se diga que é porque o povo não sabe escrever, não sabe ler. Não sabe ler e escrever, mas sabe pensar; não é uma torre de marfim.

E os verdadeiros técnicos estão ouvindo sempre mais o povo. Universidades que, cada vez mais, se abrem para ouvir o povo. Eu sonho com essa aliança sempre maior entre a universidade e o povo. Imaginem se em cada região as universidades pudessem liderar esses movimentos, fazendo com que o povo tivesse um conhecimento sempre maior, completo, dos problemas locais!
  • Com Tancredo Neves, o senhor vê possibilidade de esse pacto social corajoso acontecer, com a participação do povo?

Dom Hélder – Vocês são engraçados! Vocês pensam que eu tenho coragem de falar a mineiros sobre um mineiro…? Eu nunca acreditei que mineiro comprasse bonde. Vocês são políticos, vocês são mestres em política. Então, vocês é quem podem me falar sobre um mineiro que é candidato, ora essa é boa!

Dom-Helder

  • O senhor acha que nesse pacto todas as camadas da sociedade vão ter que contribuir?

Dom Hélder – Acho que, primeiro, a gente tem que focalizar quais são os grandes problemas e, dentro deles, eu teho a impressão de que há forças vivas aí, capazes decontribuir. Para a Constituinte, por exemplo, deve-se ouvir todas as forças vivas da nação. A OAB vem coletando dados, estudando o que é indispensávelaum constituinte, de modo a poder elaborar uma verdadeira Constituição. Mas não só eles,ná os engenheiros, agrônomos,  interessados em saber o que vai dar a Amazônia. Serpa possível que possam extinguir totalmente a Floresta Amazônica?O que é que significa isso ecologiamente, não só para o Brasil? Há médicos preocupados com a saúde…

  • O senhor falou que um pacto social tem que contemplar os problemas mais sérios do povo. Que problemas o senhor acha que seriam os mais urgentes no Brasil hoje?

Dom Hélder – Há problemas nacionais, há problemas regionais e locais. Hoje à noite eu vou receber uma Medalha Sobral Pinto. Sobral, quando eu cheguei ao Rio de Janeiro, jovem de 27 anos, ele já tinha uma característica curiosa: ele, cada vez que via abusos partindo dos poderosos – e às vezes eram os mais poderosos – ele não podia fazer nada, mandava uma carta. Uma carta ao próprio. E, na carta, ele procura mostrar os absurdos que estavam sendo praticados. Assim que ele mandava a carta, ele me dava o privilégio de ler a carta. E muita coisa, indiretamente, eu aprendi com Sobral. Tanto que eu recebo com muita alegria esta medalha.

Justamente porque temos problemas gravíssimos, eu acho que essa é a hora muito propícia para uma conclamação geral de todoas as forças vivas.

Vocês vejam, por exemplo, a imprensa. Se a imprensa escrita e falada dpendesse de vocês… Se dependessem de jovens (psiuuu!)… E, às vezes, nem sequer o secretário. O secretário já tem aquele cargo de cortar por causa do espaço. Mas, às vezes, não é só por causa do espaço não, né? E eles fazem isso de coração apertado. E, às vezes, o próprio diretor…

Como eu agradeço a deus não me fazer viver numa hora em que já estivesse tudo resolvido! Os problemas hoje são mundiais… Hoje n]ap há mais problemas limitados às fronteiras de um país. primeiro porque os meiso de comunicação social permitem assistir na hora os acontecimentos. Depois porque as grandes companhias multinacionais arrebentam com as fronteiras de um país. Aqui no Brasil, agora, elas estão perdendo a cerimônia – já se diz IBM do Brasil.

Dom Helder 109 anos - revista missões

  • Os problemas brasileiros, por exemplo a desigualdade, podem se comparar ao que existe na ordem mundial?

Dom Hélder – No Brasil nós temos aspectos mais graves do que se passa em plano mundial. Nós temos os mesmo reduzidíssimo número de brasieiros sempre mais ricos. E temos a massa que está aí, cada vez mais empobrecida. E se a gente fosse atender – eu tenho a esperança de que a gente não atenda – as exigências anti-humanas do surto de agiotagem das empresas multinacionais, que facilitaram ao máximo as nossas dívidas, seria ainda pior.

Nossa gente não entende de finanças internacionais, mas de agiotagem nosso povo entende. Nosso povo é doutor em agiotagem.

Sabemos que as condições que estão sendo impostas (pelo FMI) são descabidas. Não foi para isso que o Fundo Monetário Internacional foi criado. São condições de agiotagem. O que a gente paga em juros não é brincadeira. E não sabemos até quando a gente vai continuar pagando.

  • A Igreja sugere, mas Dom Ivo diz que não deve se imiscuir nas negociações do pacto. Como explicar essa posição?

Dom Hélder – A Igreja se compara com o organismo humano. Nenhum vive sem o outro. A saúde de um povo depende de que cada ordem esteja em seu lugar, e de que haja entrosamento. A Igreja tem uma parte hierárquica. Mas os leigos também são Igreja. O que DomIvo quis dizer, não foi que a Igreja vai se desisnteressar. Ele se referiu mais à Igreja hierárquica. Porque, em se tratando de política, qual é a palavra exata a respeito da participação da Igreja na política?: enquanto se entende por política a preocupação com o bem comum, e com os direitos humanos, toda a criaturahumana está engajada.

Interessa muito à hierarquia que em todo o país todo o povo tenha sua vida política; tenha não só um partido – é sempre perigoso um partido só -, tenha partidos. E interessa à Igreja hierárquica e aos leigos que os partidos tenham programas que atendam ao bem comum, aos direitos humanos. Daí a gente falar em exigências cristãs da ordem política, ou nesta sociedade pluralistas, exigências éticas de uma ordem política. Quando se trata, então, da presença na política partidária, a Igreja, se dependesse dela, clamaria para que houvesse partidos, para que o leigo não tenha desculpa de dizer que “a política está suja”. Está suja? Vá ajudar a limpar. A Igreja quer que o leigo milite nos partidos políticos. E espera que o leigo, militando lá dentro, exija que os estatutos, e a vivência do partido, salvaguardem o bem comum.

O que Dom Ivo quis dizer é que a Igreja Hierárquica já não precisará mais estar aí tomando a dianteira o tempo todo. Mas não é a ausência da Igreja, é a presença do leigo, da Igreja através de seu laicato, natualmente sempre em ligação muito estreita com a hierarquia.
  • Se a política está suja, vá ajudar a limpar, o senhor disse. Foi esse o papel da Igreja durante esses 20 anos (de ditadura)?

Dom Hélder – O que aconteceu vocês sabem de sobra. Aconteceu que houve períodos em que, praticamente… quem é que tinha v oz? Quem é que tinha direito de falar Era o povo? Era a imprensa? É verdade que a história de vez e voz ainda está meio problemática, não? Não é tão claro assim que já se possa aproveitar a vez e usar a voz. Mas há algum espaço. Isso não quer dizer que a Igreja não está tentando fazer a sua parte.

  • Então, qual o papel da Igreja nesse pacto social?
É imenso. Nós temos que anunciar o Evangelho de Cristo. Antes de apontar culpados, a nossa preocupação é ver até que ponto os nossos crentes estão vivendo a religião. Nós temos a obrigação, filhos do mesmo pai, de tratarmo-nos de verdade como irmãos e como irmãs.

A grande preocupação das igrejas do mundo inteiro é com a chegada do novo milênio. Mais 15 anos e será já o início do terceiro milênio. Nós entendemos que é desafio para nós aproveitar esses 15 anos antes do ano 2000. Nós temos trabalho de sobra. Mas, como eu disse, sempre a hierarquia velará para se ter paz e justiça, e para que os leigos participem da vida política nacional.

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Postagem revista e atualizada às 20:26: correção de erros de digitação e inclusão de informações necessárias.

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