por Sulamita Esteliam
De onde vem o ódio a Lula e ao PT? O que o alimenta? Líder absoluto e incontestável das pesquisas eleitorais, nestas e em eleições passadas, mesmo preso, Lula e o partido que criou a partir da base trabalhadora organizada em sindicatos, se mantém com alta dose de rejeição.
A contradição é apenas aparente.
Não é apenas o gado, que segue o títere inominável. São pessoas que se dizem cristãs, bem-formadas na estrutura familiar solidária, por que de origem humilde, e mesmo na educação formal: “Menos o PT”, já cansei de ouvir, me espantar, contra-argumentar e me entristecer.
Para mim, não há conexão possível entre o Coisa-ruim, o negacionismo, a falta de humanidade, o preconceito, o descaso, o desrespeito, o racismo, o genocídio e a ideia de Deus, e a pregação do seu filho-homem, Jesus.
E há a esquerda dogmática, que o critica por fazer acordos e ceder para governar, e não reconhece o PT como o maior partido de esquerda da América Latina, exatamente por sua origem operária. O proletariado com que se identifica é aquele corneado pelo regime bolchevique.
Há nisso, na minha reles maneira de ver as coisas, boa dose de inveja porque a teoria levada ao extremo rigor não os permitiu forjar um partido de massa; nem para disputar eleições, que dirá para fazer a revolução. Mas isso é outra história.
A casa-grande, por seu lado, que se aninha na elite econômica, é predadora por natureza e não aceita dividir o pouco com a raia miúda. Pobre bom é humilhado, de cabeça baixa e sem recursos, com a bota na garganta, para servir de capacho.
Tudo alimentado pela mídia convencional, que cumpre à risca seu papel de confundir para manter a “ordem natural” das coisas: o sistema que se reproduz para poucos.
Exatamente o contrário do que prega o “Sapo Barbudo”, como lhe apelidou Leonel Brizola, o fundador do PDT, o partido que o Ciro Gomes, eterno candidato 3.º lugar, está ajudando a desmantelar.
Já escrevi sobre várias vezes aqui no blogue: a questão é de classe – mas também racista e comportamental, cultural.
O passado escravocrata e reacionário do Brasil alimenta a discriminação do Zé e da Maria Povinho, e Lula nada mais é do que um filho dessa gente sem eira nem beira.
E as pautas desenvolvidas nos programas do PT e dos governos por ele liderados batem de frente com a estrutura social-familiar-patrimonial onde mulheres, negros, indígenas e LGBTQIA+s não têm lugar e/ou voz.

Devo dizer que estou bem feliz com o artigo que acabo de ler no Outras Palavras, que com qualifica e fundamenta, o que venho dizendo há tempos.
“Por trás do ódio reiterado a Lula” é assinado por Berenice Bento, doutora em Sociologia e professora do Departamento de Sociologia da UNB.
Transcrevo a parte final, em que ela descreve o “horror às mudanças”, que caracteriza nossa sociedade (NR: dividi alguns parágrafos para melhorar o visual e facilitar a leitura):
“(…)
Como as elites (econômica, de gênero, racial, sexual) lidam com transformações? Ao lado da frase “o Brasil é um dos países mais violentos do mundo”, deve-se acrescentar: “Temos a pior elite do mundo”. Um rápido relance histórico: foram precisas duas leis, a de 1831 e a 1850, para se pôr fim ao tráfico de pessoas negras. Quando a lei do ventre livre foi aprovada (em 1871), já era lei em todas as colônias espanholas. Fomos o último país a abolir a escravidão.
A República foi resultado de pacto entre militares e fazendeiros escravocratas como medida de retaliação contra a família imperial pelo fim legal da escravidão. A elite tem horror à mudança. Por isso, Lula foi exceção. Já escutamos a frase “é melhor entregar os anéis para garantirmos os dedos” para se referir a recuos de elites em outros países. No Brasil, ao contrário, o princípio é: “não entregar nada! Sugar até a última gota de sangue”.
É nesse contexto de recusa absoluta a qualquer mudança em direção à justiça social e equidade econômica que entendo o lugar de Lula na história. As políticas desenvolvidas ao longo dos governos do PT foram tímidas para nós, que temos pressa de mudar o Brasil, mas foram insuportáveis para as elites econômicas e defensores de valores da família tradicional. A eleição de Lula representará a reinstalação do cabo de guerra, em que múltiplos sujeitos coletivos estarão disputando o acesso a recursos materiais e simbólicos disponibilizados pelo Estado.
Conforme apontei, ao tentar entender Bolsonaro, eu tive que me debruçar sobre o lugar que Lula ocupa na história. Há um abismo entre o meu desejo de um mundo sem injustiças e de plena equidade (um mundo socialista) e o país que traz em sua biografia 522 anos de genocidade (práticas continuadas de eliminação de determinadas populações).
Quero eleger o Lula e espero que a excepcionalidade que ainda representa sua presença no poder seja superada e que minha vontade, em algum momento, se encontre com a história desse país que ainda vive sob o signo da casa-grande. Faremos nossas disputas na dimensão institucional, mas não nos esqueçamos de que é ali, na esquina, na sala de aula, nos debates difusos e rizomáticos, que novos valores devem ser disputados.
Vamos eleger bancadas identificadas com a luta por justiça social e pela defesa do bem-comum, mas não nos iludamos que fazer política seja limitado à esfera do Estado. A disputa acontece todos os dias, em todas as dimensões da vida. Não existe um caminho reto e único. A pergunta “Como Bolsonaro aconteceu?” nos levou a enxergar que a defesa da tortura, da morte e do assassinato não é apenas banalizada, é valorizada. É um discurso com forte adesão social e chegou a tornar-se moeda eleitoral: “vamos vender o ódio, intensificar o mantra que ‘bandido bom é bandido morte’”. Para se interromper essa valorização, outras políticas devem ser feitas antes, durante e depois da eleição do Lula. A esfera da cultura e dos valores é o campo de batalha diário.
A interpretação do lugar do Lula e a eleição do Bolsonaro foram mediadas por uma radicalização do significado de “política” e “poder”. Girar a chave analítica é entender que há um poder imenso das institucionais não estatais (a família e a escola, principalmente) para definir quem pode e quem não pode habitar o mundo. O/a trabalhador/a, antes de se tornar trabalhador/a, é submetido à socialização em que valores são transmitidos e incorporados como verdades. A classe trabalhadora não nasce adulta. E nesse processo de se tornar são apreendidos valores compartilhados que atravessam a vida social.
Do trabalhador mais precarizado ao banqueiro, há aprendizados compartilhados que hierarquizam as existências em gênero, raça, sexualidade. Então, o poder não está exclusivamente no Estado. Não é possível “esperar” o grande dia da revolução em que os “aparelhos ideológicos de Estado” sejam tomados pela classe trabalhadora e que uma nova humanidade seja parida. Esse parto é lento e contínuo. E a eleição do Lula é a continuidade de um parto interrompido institucionalmente nos últimos quatro anos.”
Só discordo do fecho da última frase: “a Eleição do Lula é a continuidade de um parto interrompido insitucionalmente“, não “nos últimos quatro anos”, mas nos últimos seis anos; para ficar apenas na oficialização do golpe maquiado de impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Na verdade, começou dois anos antes, na tentativa de deslegitimar sua reeleição, pelo ser que chamo de 1º neto, o de Tancredo Neves.
Clique para ler a íntegra do artigo de Berenice Beto no Outras Palavras
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