Thiago de Mello e a poesia como arma da indignação: ‘Os Estatutos do Homem’

O poeta no Rio Andirá, em 2015 – Rodrigo Sombra-Divulgação, a partir da FSP 2018
por Sulamita Esteliam

Estou muito mexida, hoje – e com uma tremenda dor de cabeça, que me acompanha há uma semana -, para escrever algo consequente. Destarte, antecipo a postagem que planejei para a Sexta-Feira da Paixão, a título de saudação de Páscoa, entendida como espaço de renascimento.

Resgato um dos mais belos poemas que conheço, do poeta-ídolo da minha juventude, o amazonense Thiago de Mello.

Vem a calhar nesses tempos sombrios, onde a esperança, conforme Friedrich Nietzche, o filósofo e poeta prussiano/alemão, parece mesmo condenada a ser a praga esquecida na Caixa de Pandora.

Neste vídeo, de 2006, ele se apresenta no Circo Voador, no Rio de janeiro, em 10 de dezembro de 2006. É acompanhado do Duo GisBranco – Bianca Gismonti e Claudia Castelo Branco, ambas ao piano.

Assista:

Aos 94 anos, completados em 31 de março, Amadeu Thiago de Mello vive em Manaus, e se ressente de não mais frequentar sua casa na Freguesia do Andirá, às margens do rio de mesmo nome, em Barrerinha, Amazonas. Lá foi  fotografado em 2015, durante o banho.

Em 2018, nos conta reportagem de Cláudio Leal, na Folha SP, preparava sem pressa suas memórias; que levariam o curioso título de Eu com os Outros. Os “Outros” são escritores e poetas, já mortos, com quem conviveu.

Quatro anos antes, quando o poeta acabara de completar 80 anos, seu poema mais famoso celebrava meio século. Os Estatutos do Homem foi escrito em 1964, em protesto contra o Ato Institucional nº 1, da ditadura oriunda do golpe civil-militar que duraria 21 um anos no Brasil.

À época, Thiago de Mello era adido cultural no Chile, ainda governado por Salvador Allende. Quando o golpe se deu, ele morava na casa do poeta Pablo Neruda, em La Chascona. Ele conta ao colega Victor Nuzzi, da Rede Brasil Atual, suas lembranças do 1º de Abril e 1964, quando assistiu ao pronunciamento do presidente deposto, João Goulart, ao lado dos dois chilenos. Renunciou ao seu posto.

Há seis anos. O poeta se preparava, então, para lançar o que dizia ser seu último livro de poesias Acerto de Contas – não Ajuste de Contas, como na reportagem – Global Editora.

E aqui vai o poema em letra, para você guardar na memória e, quem sabe, ostentar cultura e sensibilidade e declamar para xs amigxs:

Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)

Thiago de Mello

Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.

Artigo XI
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

 

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