Sonho de uma noite úmida e Soledad rediviva

por Sulamita Esteliam

“Mãe, não sofras se não volto, me encontrarás em cada moça do povo deste povo, daquele, daquele outro do mais próximo, do mais longínquo talvez cruze os mares, as montanhas os cárceres, os céus mas, Mãe, eu te asseguro, que, sim, me encontrarás!”
O último poema de Soledad Barrett Viedma, composto e endereçado para sua mãe numa forma de despedida.

Na noite úmida do Recife, me perco nos caminhos ilógicos do traçado, também em Boa Viagem, à procura de um restaurante que certa vez minha filha me levou. Cruzo a avenida num ponto cego, e me dou conta de que não estou na beira-mar.

Era onde, pensei, deveria sair para  recuar um jardim e encontrar a bendita casa de camarão que não estava aonde deveria estar. O que não faz a cerveja errada numa tarde sem compromisso, com boas companhias!

Meu lado repressor, que ainda de mim não desistiu, quer me lembrar de que já sou bisavó, sóque ainda é cedo para tanta chateação: quero comer frutos do mar, é só o que me apetece. Da luxúria à gula, é só dobrar a esquina.

E lá está um homem que desconheço, gentilmente protegendo uma mulher que se alivia na sebe ao pé do muro… do posto policial. Ousadia das emergências.

Penso cá comigo que não chegaria a tanto, e por muito menos, um meio-fio, uma roda de violão, um cigarro se acabando em cinzas, minha mãe me buscava na noite do Ferrugem com torturantes lava-caras e risíveis promessas de vir a queimar no fogo do inferno.

E a noite me chama, e preciso comer camarão e então reconheço a praça. Percebo que tenho que atravessar de volta a avenida para reencontrar a trilha dos meus desejos.

Só então noto que estou a menos de 50 metros da casa em que trucidaram Soledad Barret, grávida do homem que a delatou: o número 1934 da avenida, onde há tempos há uma pizzaria e antes havia uma boutique. Passava ali com frequência para ir ao supermercado, morei uma quadra antes, por vários anos.

Recuo sobre meus passos para conferir se continua lá. Sim. Recobre-se de vergonha a ironia. A mentira e o sadismo, estes não morrem munca.

A história oficial conta que ela foi entregue pelo marido às forças da repressão numa chácara nos arredores da cidade: o que dela restava.

Cabo Anselmo, agente infiltrado na guerrilha urbana da resistência à ditadura, enfim, foi-se encontrar com seus demônios. É a notícia algumas noites depois, em volta do cipó da aroeira no lombo do tempo nem sempre tão ligeiro com os algozes.

Oitenta anos! Não obstante, ainda não nasceu quem escape à justiça do movimento. E a morte ronda a vida, dia e noite, e madrugada também. 

No tempo e cena reais, há uma peça reencenada na cidade sobre Soledad Barret, ocorre-me. Hilda Torres em toda a sua potência interpretativa, a partir do livro homônimo de Urariano Mota. Agora, vai levar o espetáculo para o pessoal do Agreste ver, e depois sai em turnê nacional.

O Brasil carece de injeção de memória.

Soledad rediviva para mostrar do que são capazes certos homens no poder e pelo poder, ainda que mínimo. 

Enquanto isso, na Rosa e Silva, trilha que conduz à parcela aristocrática do Recife, nasce o Centro de Referência da Mulher Soledad Barret. 

Para mostrar do que as mulheres são capazes, quando se unem e defesa da vida.

Esperança em ação pelo #OcuparResistir do Movimento de Mulheres Olga Benário, aqui de mãos dadas com o MLB – Movimento de Luta pelos Bairros, Vilas e Favelas.

A ocupação faz uma semana e carece de tudo, e recebe doações pelos meios e endereços lincados à reportagem do alternativo Marco Zero Conteúdo.

Mulheres ocupam casa para criar centro de acolhimento para mulheres vítimas de violência no Recife

Aí se sabe que o grupo de mulheres ocupantes está em diálogo com a Prefeitura do Recife, a quem o casarão tricentenário pertence. Doação de uma senhoria herdeira única, que doou o imóvel para ali ser contruído abrigo para mulheres idosas. 

A destinação prévia serve a um só propósito com duas asas: mulheres idosas e mulheres em situação de risco, carentes de acolhimento.

Deveres do Estado a serem exercidos com um bom projeto oriundo do povo que o sustenta com votos, impostos e boas doses de tolerância.

flap Ocupação CRSoledad Barret

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