O tempo do qual um dia nos perdemos…

por Sulamita Esteliam

Retomamos a caminhada na praia no último fim de semana, mesmo com a maré já começando a subir. Nos abstemos neste 6 de março, feriado da Data Magna de Pernambuco, que celebra a Revolução de 1817; escolhemos o ócio em casa, ou quase…

Sábado e domingo, andamos 5km na arrebentação, com a água tépida convidando ao banho de mar; é exercício para perna alguma botar defeito. Cedemos ao convite em meio ao percurso de volta, e nos refestelamos n’água. Que delícia, e que privilégio!

Boa parte de velhos e velhas, aposentados como nós, não conseguem se abastecer desse deleite. Ao contrário, andam a morrer de fome; mais do que crianças de 0 a 5 anos.

Ainda que a chuva tem sido visita frequente nesses três meses , só me lembro de ter sentido tanto calor como agora há 25 anos, no primeiro verão por aqui.

Quando não sopra o terral, a brisa salva o Recife de seu eterno frever. Só que não é apenas o calor escaldante no verão que cozinha miolos, é preciso lembrar.

Dados da Secretaria Estadual da Saúde, relativos a 2020, primeiro ano da pandemia do seu Corona mostram: 268 idosos foram consumidos pela desnutrição, enquanto sete de crianças deixaram de ver a luz com o mesmo quadro. Linco ao pé da postagem.

Provavelmente, em 2024, teremos números menos doídos.E o Recife, que voltou a ser destaque no Brasil da desigualdade, torne a ser lugar que acolhe bem os filhos da terra, além de turistas – sempre muito bem-vindos.

Dias luminosos prenunciam que é possível jogar fora essa tristeza. O clima está mais ameno e as pessoas mais leves. E nós desfrutamos o que e como podemos.

Faça sol ou chuva, normalmente acordamos e nos levantamos cedo. Mas nosso café da manhã é um prazer que se prolonga; nenhuma pressa em deixar a mesa. É um direito que nos damos, não mais apenas no fim de semana, feriados e dias santos de guarda.

Conquista, ora mais! Afinal, multiplicamo-nos em seis, diversificadamente: o meu, as minhas, as dele e a nossa – e ainda demos uma mãozinha no cultivo de alguns dos frutos gerados pela descendência. Somos bem-afortunados na colheita.

Não temos mais todo o tempo do mundo, ninguém o tem. Mas temos o tempo da vida que nos resta, e torcemos para que seja longo o bastante para completarmos a jornada que nos foi legada e prazeroso sempre que possível.

Todavia, somos seres coletivos, e o entorno é parte do nosso bem-estar: a gente é do tipo que só se sente bem quando o olhar ao redor nos traz alegria.

Na descida e no retorno praieiro, no sábado, duas imagens nos chamou a atenção: quando chegamos à beira-mar, o gramado da Pracinha de Boa Viagem estava vazio do acampamento de deserdados filhos de Eva e de esquecidas filhas de Lilith.

O que nos fez lembrar que no pontilhão da travessia do Canal da Jequitinhonha, trezentos metros antes, havia apenas uma senhora e uma criança; bem limpinha, embora segurasse um cartaz de papelão com pedido de ajuda.

Até o Carnaval eram ao menos meia dúzia de famílias ancoradas por ali. Embora, vez por outra, a prefeitura se preste à “limpeza social”; o que há muito não se observa, contudo.

Também as bancadas do calçadão já não servem de reduto de pobres homens desocupados, dedicados ao entretenimento possível: derrubar meiotas de cana para enganar o estômago e anestesiar o desespero.

A vida, ao que parece, gradativamente, volta ao normal de tempos do qual nos perdemos. É o caso de conferir, doravante.

Na subida, margeando a pracinha, no início da tarde, um lavador de carros respondia ao vigilante do hotel, feliz e sorridente, enquanto lustrava um automóvel preto, desses medianos:

– Estou largando, esse é meu último do dia. Vou pra casa almoçar e descansar, por que de noite pego no outro serviço… Ahahah, é bom demais trabalhar!

Talvez aí esteja uma das explicações para o sumiço da gente na praça, na ponte, dos bancos do calçadão da praia : o tecer da esperança só é possível com linha desembaraçada e tear azeitado.

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Fonte referida:

Marco Zero Conteúdo

–  Desnutrição mata mais pessoas idosas que crianças em Pernambuco

– Organizações sociais do semiárido preparam retomada da construção de cisternas

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