Conexões entre a vida e a arte, ou a coisa aqui tá feia…

“Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça/E a gente vai tomando que, também, sem a cachaça/ninguém segura esse rojão.”
Chico Buarque/Francis Hime, Caro Amigo
Expurgo: a arte traduz a vida. Cena de Macunaíma Gourmet do grupo mineiro Pigmalião Escultura que Mexe
por Sulamita Esteliam

Acabara de assistir à estreia do espetáculo Macunaíma Gourmet, no Teatro Francisco Nunes, que fica no Parque Municipal no centro de Belo Horizonte. Havíamos cruzado o parque a pé, pois demoramos a deixar o teatro e as portarias que dão acesso à Afonso Pena já estavam fechadas. A única saída possível era pela Alameda Ezequiel Dias, já na divisa com Santa Efigênia.

Minha sobrinha de coração, atriz da peça, nascida nos arredores de Floripa, comentou que jamais imaginaria passear pelo parque à noite. E se lembrou de quando a mãe veio conhecer Beagá, como havia se encantado com aquele pulmão verde no meio da metrópole, mas que ela própria se preocupara com a quantidade de “noiados” que circulam pelo local durante o dia.

Lembrou-se, também de como, acostumada ao ritmo de cidade pequena, a mãe se penalizava e queria ajudar cada pedinte que dela se aproximava.

Comentei que amava aquele parque, e quando acontece de eu estar com algum visitante, começo por ali o flanar pela cidade; e o desembarque inevitável é num dos bares do Mercado Central. Os “noiados” sempre foram parte da paisagem do Américo Renné Gianetti, mas é lugar seguro, com vigilância pelos sete cantos.

Assim, conversando, chegamos ao ponto de saída. Enquanto meu sobrinho, companheiro dela, testava seus dotes de atleta para ir em busca do carro do lado oposto, sugeri que, dado a hora, esperássemos do outro lado da rua, no estacionamento de uma drogaria. Questão de segurança.

Comentávamos sobre o espetáculo, que ela, senso crítico de virginiana, considerava que estava “longe de ficar pronto”. E Euzinha dizendo que era exagero; o conteúdo e o desempenho da trupe haviam absorvido, plenamente, os pequenos escorregões próprios de estreia. Aliás, esta é a última semana em cartaz, de quarta a sábado, porque no domingo, 30 o grupo viaja com o Palco Itinerante.

Foi então que ele se aproximou. Um homem franzino, meia estatura, negro. Impressionou-me a profunda tristeza nos olhos fundos. Estava faminto e pediu ajuda para comprar um prato de comida. Estava revoltado com o escárnio com que vinha sendo contemplado por cada olhar de cada pessoa que abordava.

– Sou de Aracaju, dona. Vim em busca de trabalho. Sou padeiro profissional, faço o que as pessoas comem, mas não consigo me colocar. Estou morando na rua e tenho que me humilhar para matar minha fome. As pessoas me olham com medo ou com desprezo, e só me dão moedinhas… Eu estou com fome, meu estômago dói de tanta fome, e eu que faço o que as pessoas comem…

A última frase saiu entrecortada de soluços, quando viu minha mão estendida com uma nota de cinco reais. Era o que eu tinha a oferecer, e eu estava envergonhada. Mas ele recebeu o trocado como um bálsamo, agradeceu e se retirou, apertando a nota na mão direita.

Olhei para a minha sobrinha, que olhava para mim meio que desconcertada. Disse a ela que não existem coincidências, mas conexões.

Ela acabara de representar um texto que fala do Brasil despedaçado, onde as pessoas se tornam moeda de troca e mercadoria, produto a ser traçado no banquete de hipócritas. E eis que nos deparamos com pobre diabo vítima desse deleite. Muito provavelmente era um dos “noiados” expulsos do parque pela vigilância noturna.

De qualquer forma, em situações desse tipo, escolho acreditar nas pessoas e ajudo com o que posso, se posso. O uso que elas farão da merreca já não é problema meu.

Nisso, meu sobrinho chegou, entramos no carro e a prosa mudou de rumo.

Mas fiquei com o olhar daquele homem na minha cabeça, o coração apertado com a situação dele, desorientado, como tantos outros naquela cidade, estranha para ele, e certamente como muitos outros em outros cantos do Brasil.

Resolvi que ia contar essa história, qualquer dia desses.

E o dia foi hoje, quando me deparo no GGN com um caso parecido, triste e de desfecho trágico, ocorrido no Rio de Janeiro. Uma juíza mandou prender um homem negro e pobre que perambulava em frente ao fórum, em busca de ajuda para retornar à sua cidade de origem, em Santa Catarina.

É o buraco da humanidade aonde nos afundamos.

Leo, eletrecista desempregado, também perdeu a mulher e os filhos. Mora nas ruas em Beagá

Lembrança puxa a memória e veio outra história que traduz o que eu quero lhe dizer, como na canção de Chico e Hime, em livre versão, que a coisa aqui tá feia…

Deu-se com Leo e Leonardo – parece nome de dupla caipira, mas é pura conspiração do universo.  Falo de dois amigos que moram na calçada em frente à Igreja de Lourdes, também na área centro-sul de Belo Horizonte.

Encontrei-os na Praça da Liberdade, em meados de agosto, duas semanas após minha chegada. Leo envergava um chapéu de pirata, igual ao que tenho aqui em casa no baú de fantasias para o carnaval do Recife e de Olinda. Pediu uma moeda para “inteirar” para comprar comida. Falei que só tinha 50 centavos, ele disse que servia, entreguei e ele passou ao alvo seguinte.

Segui fazendo fotos da praça, movimentada no feriado local. Daí a pouco ele me abordou novamente, acompanhado do amigo, ambos com jeito de quem tinha tomado umas…

– Uai, de novo!? Já não topamos lá atrás? – retorqui sorrindo.

– Foi…? Irh, é mesmo, a senhora me deu 50 centavos… – e voltando-se para o amigo: “ela boazinha…!”

Registrei o tom irônico, mas não passei recibo. Saí pela tangente e perguntei se poderia fotografá-lo. Leo riu de um canto a outro da boca maltratada, e perguntou, já fazendo pose: “É pra colocar na internet?”

A conversa rendeu sobre a alegria da festa, o pastel “seco” que ele acabara de ganhar de uma frequentadora, até que Leonardo foi direto ao ponto.”Quem sabe a dona aceita pagar alguma coisa pra gente comer…”

Concordei, mas disse que não naquela lanchonete, era melhor buscar comida de verdade.

– Tem razão, ali é muito caro, né? – observou Leo, com um meio sorriso.

Então, Leonardo olha para mim fixamente e comenta com o amigo: “Ela lembra muito a dona Maricotinha, cê não acha!?”

– Quem é dona Maricotinha?

– Uma dona muito boazinha, que ajudava nóis lá em Itabira – respondeu Leo, acrescentando – é filha do poeta Drummond de Andrade …

– Que conversa. Drummond só teve uma filha, e o nome dela era Maria Julieta…

– Não, mas a Maricotinha é filha fora do casamento…

Dois treteiros, pensei comigo, mas já havia decidido garantir o almoço deles.

Descemos a João Pinheiro conversando, sob o olhar curioso dos transeuntes. Certamente pensavam “aquela mulher é doida de dar trela para dois moradores de rua, com jeito e cara de moradores de rua…”

Uma outra mulher, que também estava na praça, acabou se juntando a nós, e assumiu a conversa com Leonardo, enquanto Leo contava e recontava a história deles.

Leo é casado, ou era; a mulher o colocou pra fora casa depois que perdeu o emprego, lá em Manhuaçu, caminho do Rio de Janeiro. Tem quatro filhos, mas sente saudades, “de doer”, do caçula de oito anos. Leonardo também é ou foi casado, tem três filhos. É de Itabira, “terra de Carlos Drummond de Andrade”, onde os dois se encontraram, e de onde vieram tentar a sorte na capital, há seis meses.

Leo é eletrecista e Leonardo pintor de parede. Nenhum dos dois conseguem trabalho, nem através do Sine, porque não têm endereço fixo. “Comé que eles vão avisar a gente da vaga? Só mesmo algum conhecido arranjando um serviço… Mas aqui nóis só conhece gente como nóis mesmo, morador de rua…”,  observa Leo.

– Quem sabe a gente não compra um celular, aí ao menos nóis tem um telefone para contato – interferiu o amigo, dizendo que eu tinha razão; o Sine pode ser um bom caminho.

– Boa ideia essa do outro Leo, não, a de um celular?

– Leo sou eu. Ele é Leonardo, entendeu? – lembrou-me, sério.

– Ah, tá, entendi.

Na Guajajaras, dobramos à direita em direção à Goiás, onde eu sabia existia pelo menos um restaurante de comida a quilo.

À porta, perguntei se queriam entrar e se servir, mas ambos preferiram me esperar do lado de fora. Armei os marmitex, coloquei cada qual numa sacola, com uma garrafinha dágua, e lhes entreguei, desejando-lhes boa sorte!

Leo e Leonardo sorriram e responderam em uníssono: “Nós tem muita sorte de encontrar a senhora. Deus abençõe todos os dias da sua vida”.

– Amém, a vocês também.

Segui meu caminho, sem olhar para trás, doidinha para chegar no Lucas e tomar uma cerva bem gelada. Mas pude ouvir o comentário de Leo: “Mas ela não parece mesmo com a dona Maricotinha…!?”

 

 

 

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